Fazer bem

Após o nascimento do primeiro filho, aconteceram uma série de viagens de táxis/Uber, algumas com, outras sem o bebé. Seja por ele estar lá ou implicarem destino/partida da maternidade, a conversa movimentava-se com o tema filhos. Houve de tudo um pouco, boas e más experiências. Uma ficou na memória, a do motorista que começa a falar do filho de quatro anos e de como as coisas se complicam agora, “agora entra a educação”.

Verdade. Até então nunca me tinha ocorrido que era preciso educar um filho. Tinha mais com que me preocupar. Por exemplo, ele nascer bem. A mãe estar bem (antes, durante e depois). Naqueles primeiros dias assegurar-me que ele não morria. Entretanto, tive que garantir que ele não se matava (ou como colocava na altura “ensiná-lo a não morrer”) com qualquer coisa que estivesse a aprender, desde comer a perceber que, se cair da janela do quarto andar, o pai “não o pode arranjar”, como faz aos brinquedos. Enquanto isto acontecia, preocupei-me que ele aprendesse a brincar, a não ter medo de brincar e, dentro dos possíveis, que pode fazer as coisas como quer. Os limites são negociáveis.

Coisas que considero sobrevivência básica: física dele, física minha, mental dele, mental minha. Educação passa por muitas outras coisas, no fundo, regras. A construção da obsessão com o fazer bem. Isso não vem com a educação, não vem com um bebé, existe em muita coisa. Com um bebé desenvolve-se com a pressão exterior (família, amigos, outros) e pelo lugar onde os pais se colocam, pelas formações que têm, livros que leem, conselhos que procuram pela procura do fazer bem. Como se a fórmula fosse única, o caminho definido e pouco individual e aquele tipo de pressão fosse necessário.

Com o crescimento dos filhos a obsessão pelo fazer bem torna-se descontrolada com a educação: natural que a pressão passe para a educação. São as boas maneiras, as regras de conduta, as formas de estar, o saber estar, o incómodo que causam aos outros (metemos um ecrã à frente para não incomodar e ficarem tão sossegadinhos). Os moralismos do costume. Coisas com que os adultos se preocupam, sobretudo os outros adultos. Quer-se que a coisa encaixe bem, que siga uma ordem que agrade mais aos outros do que ao ser que está a crescer, a aprender. Qualquer desobediência a essa ordem parece um caminho sem retorno. Já todos estivemos aí.

Desde aquele dia que penso, com uma regularidade pouco saudável, nas palavras do motorista e temo pelo dia em que entra a educação. Possível que já tenha começado e me tenha ultrapassado a mil. Ocorre-me esse lugar de desvantagem cada vez que o oiço a dizer um “foda-se” ou, o muito complexo e admirável “for fuck sake”. Sempre tão oportunos e bem metidos que me sinto incapaz de o contrariar (e também de não me rir) e de me juntar a ele nesta arte de não fazer bem. Tem-me educado a não fazer bem. A não pensar nisso, a deixar para trás. A irmã reforçou o processo e convence todos os dias de que, se calhar, todos juntos, até estamos a fazer bem.

O gajo que não pariu, parte 2

A dúvida assalta-me nos últimos meses. Após tanto assédio, ainda teria agarrado na esfregona. Não que me orgulhe. Também não me envergonho. Aquela terça-feira prometia ser diferente. O primeiro dia de verão. Chovia. O nascimento planeado para o final da semana. Nesse primeiro dia de verão iríamos à primeira consulta na maternidade. Ver como as coisas estavam, ansiosos para que a experiência não tivesse toques imprevistos como da outra vez.

Nos meses, nos anos anteriores antecipámos esse momento. Foi algo que marcou, talvez por manchar o que se antecipa como novo, perfeito. Surgiram sinais na noite anterior ao primeiro dia de verão. A intensidade do primeiro parto camuflou um pouco tudo aquilo acontecia. A esta distância a incerteza virou evidência, prova de um processo em movimento.

Havia algo marcado para esse dia. Uma consulta. Com isso em mente, decidi não ir trabalhar. No inconsciente havia outra coisa qualquer que dizia que era melhor assim, volta para casa. E assim foi, depois de deixar o mais velho na creche, voltei para casa. Tudo igual. Contrações, muito espaçadas. Pouco tinha mudado nas últimas dez horas.

Nesses dias ainda escrevia na sala, junto à janela. A secretária que entretanto ficou ocupada por Lego era ainda a nossa mesa de trabalho. Sentei-me nela, ao computador, a fazer coisas enquanto a hora de almoço não chegava, para sairmos. A manhã existia num permanente cinzento com chuva contínua. É assim que me lembro. Estava calor.

Trabalho irrequieto. Inconstante e preocupado. Vou confirmar se está tudo bem. Está. A esta distância é facílimo rir com esses momentos. Depois de uma dessas vezes, oiço um grito. Eu e a sogra vamos a correr para o quarto.

(A sogra estava connosco nesses dias. Veio para cá dar apoio, caso o nascimento se desse a uma hora inconveniente. Seria bom ter alguém por perto para dar um olho no mais velho.)

Está em pé, há dor. Entre os gemidos, no telemóvel dela ouve-se um diálogo acompanhado por música de uma app de relaxamento. É muito irritante. Parece estar próximo, mas não assim tão próximo. Digo que temos de nos preparar para sair, ir para a maternidade. Recolho as coisas, a sogra, mais sensata, experiente, analisa melhor a situação. Um de nós, não me lembro de quem, apercebe-se que há um líquido no chão. As águas rebentaram.

(Há uns dias, com visitas aqui em casa, brincávamos com essa situação. De que a esfregona já estava por perto porque, ao ver o líquido no chão, achei que o melhor a fazer naquela altura seria limpar o chão. Não há que procurar algo obsessivo aqui, apenas parecia o melhor a fazer. Confesso que a memória me falha nesse detalhe. É possível que sim. Muito possível.)

Com ou sem esfregona, o cenário coloca-me em alerta. Vivemos num quarto andar, sem elevador. A urgência tornou-se evidente, como também se tornou claro de que não conseguiríamos descer as escadas sozinhos. Nesse momento sou assaltado por uma certeza, num misto das notícias da altura, das falhas das maternidades, das urgências, e, apesar de viver na capital, assumo que a melhor forma de resolver uma dúvida naquele momento seria ligar para o 112. Assim faço. Explico a situação, peço desculpa em caso de estar a fazer algo de errado. Percebem que não sei bem o que estou a dizer, as palavras falham-me, estou atrapalhado. Os paramédicos metem-se a caminho.

Volto ao quarto. Cheira a urgência. Há qualquer coisa a acontecer, tudo está a desenvolver-se tão rápido que é impossível entrar em negação. Aquela app continua, irrita-me, e no meio de tanta urgência, pergunto se a posso desligar. Não. Havia ali qualquer coisa de tranquilizante para ela. Continuo a preparar as coisas para sair. Vivemos ao lado de um hospital central. Tocam à porta.

Os paramédicos chegam cheio de equipamento que parece meio inusitado, de reanimação. Ao telefone perceberam que a coisa estava mais avançada. Face à realidade de um parto iminente, um deles olha para mim e questiona-me porque é que deixámos as coisas chegar àquele ponto. Explico-lhe que foi de repente. E foi.

Percebo-o. Ficou conhecido cá em casa como o Rami Malek. Um querido, que reagia a uma situação incontrolável com aquela sinalização portuguesa de reagir com despropósito a uma situação imprevisível. Percebo-o, ao ver as coisas assim deve ter-lhe passado pela cabeça que tínhamos resolvido ter a criança em casa e às tantas panicámos. Não. Apenas aconteceu tudo muito rápido. O colega, mais controlado na reação “estes freaks de merda”, parecia perceber que eu estava a contar a verdade.

(Uma hora mais tarde, na maternidade, antes de se despedir de mim, olha-me nos olhos, sem parar – não há tempo para parar – e regressa ao assunto: “não entendo como deixaram as coisas chegar a este ponto”.)

O Malek percebe que a coisa está iminente e diz que temos de sair de casa, ir para a maternidade. Pede-me para agarrar algo para a cobrir e apanhar as nossas coisas, assim o faço. Aqui há uma branca. Saí do quarto para dar espaço e só me lembro de estar à saída da cozinha, pronto para a cobrir com o roupão. É o que me lembro de estar a fazer quando de repente a vejo parada no meio do corredor e a sogra a dizer “the baby is coming out”.

Não há imagem para este momento. Estou atrás, oiço as palavras e oiço algo a cair no chão, num misto de pancada seca e líquido espalhado.

A percepção vira inimiga do tempo. Num instante, meio segundo, um segundo, dois segundos, pouco interessa, imensa coisa ocorre entre um foda-se mental, uma batida que falha e uma palidez repentina. Há a imagem dela agarrada ao móvel do corredor, há o som de várias coisas a tocarem no chão. Não há uma imagem dela a nascer para este mundo. Quis ser rápida para não ficar registado. Entre os piores cenários possíveis que passam pela cabeça naquele instante, o foda-se mental que perdura na incredulidade e toda a impotência, há um som.

Ela está viva. Ela está viva.

Num ápice o Rami Malek apanha-a do chão, corre para o quarto, pede-me algo para a cobrir. Chegam os bombeiros. Eu nem sabia que os bombeiros vinham aí. Claro que vinham, era preciso uma ambulância para nos levar para a maternidade. Isto antes do nascimento. Agora ainda mais. Chegam num momento inoportuno, no certo.

Todos no quarto. O Malek a segurar no bebé e a apertar o cordão umbilical (quebrou na queda). O colega a fazer o mesmo na outra ponta. A minha sogra com a filha na cama. Saio do quarto para dar espaço, um dos bombeiros está sempre a entrar e a sair, à procura de algo. Num cenário de mobília, chão e paredes cheios de sangue e outras coisas mais, sinto que tenho de sair dali.

Não sei quanto tempo passou. Mas no metro entre o quarto e a cozinha o meu corpo processa isto tudo e começo a chorar. Com a mesma brevidade, paro, está tudo ainda a andar tão rápido, que não dá para processar. Passados estes meses todos, ainda não o fiz.

Nem nos apercebermos se era rapaz ou rapariga. A minha sogra lembra-se de perguntar. O Malek também não tinha reparado. Espreita pela manta que a cobria. Não é novidade neste texto. É uma menina. O meu corpo ameaça, outra vez, processar a coisa. Não consegue. Há um bombeiro que continua a entrar e a sair de casa, está à procura de algo que não encontra.

Volto ao quarto e o Malek lembra-se que é preciso registar o momento. O colega tira uma foto. Claro que tirámos uma foto. O Malek até fez um V com os dedos. Tudo está sobre controle, mas o bombeiro continua a entrar e a sair. Eles falam, eu não consigo perceber o que se passa. Não pergunto. Volto a sair do quarto, asseguro-me que tenho tudo o que precisamos de levar.

Nesse momento olho para o chão, há sangue e tudo o mais por todo o lado. Vejo o bombeiro a entrar sem encontrar o que precisa. Olho para o chão e não paro de o imaginar a escorregar.

Penso que já aconteceu o suficiente. O que ninguém precisa é que alguém escorregue ao sair de casa com o bebé nos braços. A imagem não me sai da cabeça, sem saber se está escorregadio ou não, não consigo deixar de olhar para o chão e pensar que algo pode acontecer.

Sou um tipo inseguro, não diagnosticado. Por isso, sou assaltado pela ideia de “como é que isto vai parecer”. A minha filha acabou de nascer, em casa, toda ela foi projectada para o chão. Parece estar bem, todos parecem estar bem, mas ela acabou de ser projectada para o chão. E estou ali preocupado se devo ou não levar a esfregona ao chão.

Qual a importância de limpar? A imagem de alguém escorregar manifesta a projecção de um receio qualquer, para todos os efeitos, está longe de algo concreto. Talvez a imagem estivesse a funcionar como uma escapatória para toda a cena, um falso pontapé para a frente para cobrir uma série de outras merdas. Um rodapé de página desnecessário. Ainda não me sentei para falar sobre isso.

O que perderia em limpar? Afinal, teria de ser feito. Assumir a tarefa naquele momento até poderia resolver eventuais problemas. Se calhar, nem era uma tarefa, mas uma manifestação de toda a minha impotência naquele momento. Salvaguardar um acidente parecia ser a coisa mais útil que poderia fazer naquele momento.

Útil, essa praga dos tempos que se vivem. Porque é que até ali eu teria de ser útil? Como se não pudesse apenas ser, ser um pai outra vez, a lidar com toda a situação ou a não lidar com ela de todo. Ou estar só feliz por estar tudo bem. Sem ter de estar feliz e ser útil. Tudo ao mesmo tempo. Parecia um luxo poder ser só uma coisa, um sentimento, naquele momento. No meio de todas as certezas e incertezas.

Enchi o balde. Agarrei na esfregona. Pelo menos, assim, ninguém vai cair. Não foi um trabalho bem feito. Ficou seco. O bombeiro chegou momentos depois com o que procurava. Estávamos prontos para sair. Tirámos outra fotografia à porta da maternidade. Com todos, desta vez sem V.

O gajo que não pariu, parte 1

Quando o tempo se torna insuportável, penso em coisas sem importância. Na sala de espera recordo algumas histórias das horas anteriores, como a do pai que desmaiou durante o parto e proporcionou um momento de ‘para tudo’ para ser socorrido momento. Os amigos riam-se. Eu não caía nessa, penso a determinado momento. Nunca se sabe. Na outra noite, sexta-feira, havia uma família inteira que panicava por uma coisa que parecia banal. Às oito e picos da manhã de domingo, os meus pensamentos eram interrompidos por uma futura avó que chegava às urgências para ir para o lado da filha. Aparentemente, o genro saiu a meio da noite para ir dormir a casa da mãe. Não tem piada. Mas tem.

Há as caras que me lembro, há um sem número delas das quais não tenho memória. Pais que estavam à espera, como eu, ou pessoas cuja urgência era impossível de decifrar quando só se espera ver pessoas com grandes barrigas nas urgências de uma maternidade. Também há aquele pai que depois revi, uns dias mais tarde, nos corredores da MAC. Estava à espera, como eu. Correu tudo bem. Nas memórias da presença das outras pessoas, há o som à distância de mulheres a parir, bebés a nascer e um não sei quê de felicidade naquele momento. Só faltávamos nós.

Algures na sexta-feira à tarde estávamos a comprar sapatos numa feira no Arco do Cego, entre a última consulta na MAC – quando induziram o parto, sem permissão – e a última aula pré-parto no centro de saúde da Alameda. Ainda não tínhamos planos para jantar, decidimos parar em casa, eu ia comprar uma frigideira porreira, antiaderente, para uns hambúrgueres. Ali pelo meio, ia arranjar uns parafusos para colocar o chuveiro na casa-de-banho renovada.

Assim foi. Tudo a postos, vaga ideia de que aquele poderia ser o último jantar a dois. Antes disso, mãos à obra na casa-de-banho, porque os últimos dias têm sido chatíssimos sem o chuveiro na parede. Não queremos isso daqui a uns dias. Lembro-me de que não foi fácil de furar o azulejo, não por culpa dele, por falta de prática minha. Também demorou mais do que a aselhice permite. E recordo-me de que quando dou por terminado e arrumo as ferramentas, começam as primeiras contrações. Sabíamos que tínhamos de esperar, ser pacientes, etc., etc., etc.. Mas começou a ser evidente que não íamos comer os hambúrgueres. Não os comemos. Hoje usamos essa frigideira para fazer panquecas. Bem presente nas nossa vidas.

Contamos o tempo entre, ficamos na dúvida se sim ou não. Continuamos a contar, apontamos coisas num papel. Ficamos com a ideia de que estão a ficar mais próximas. Talvez estivessem, saímos de casa. Fazemos como planeado, vamos a pé para a MAC. Afinal, diziam, andar a pé, ajudava. Parecia possível, e foi. Esperamos, esperamos, às tantas já estamos fartos do desespero cumulativo daquela família inteira (simpatiquíssimos, contudo, a futura avó vidente não acertou no sexo da criança), mas lá esperamos. Já não há paciência para contar períodos entre, parece tudo tão aleatório e, em simultâneo, tão certo. Horas depois de uma triagem, lá somos vistos. Contrações sim, mas a dilatação era insuficiente para ficarmos lá. Remédio? Andar.

E lá voltamos a pé para casa, às três e tal da manhã, sem jantar, e com aquela incerteza de que se calhar, quando chegarmos, temos de voltar. Tentamos dormir. Ela não consegue, eu digo que, para bem dos dois, é melhor eu dormir. Agora quando olho para trás, sinto esse momento como profundamente egoísta e um pouco como o gajo que foi dormir a casa da mãe. Mas bem, eu estava ali, pronto a ser acordado. E aquelas poucas horinhas permitiram-me ficar acordado durante as 40 + seguintes.

Sábado não foi normal. Gritos das contrações em casa e uma séria incerteza sobre o que deveríamos fazer. Voltar não parecia certo, arriscaríamos a ficar uma vida na sala de espera e um regresso desanimado e incerto. O tempo dessa anormalidade foi avassalador, esperar pelo inevitável tem o seu quê de desesperante. Sobretudo quando se aproximam 24 horas de contrações. Lá temos um sinal, voltamos para a MAC. Não me recordo como fomos, é possível que tenha sido a pé.

O cenário mudou. É perceptível que na primeira triagem sabem o que é urgente e o que é urgente. Ela é logo vista e inicia-se todo o processo. Passa das oito da noite. Faltam umas 12 horas para ele nascer. Começam os tempos de espera sozinho na sala de espera, levar a epidural é só x minutos, mas na verdade é x+x+x+x. Lá passa o tempo, eu entro, estamos juntos. A noite foi a acompanhar os padrões das máquinas na sala, eram uma forma de me manter acordado e de ver o que não podia ver. Não vou fingir que também era uma forma de “sentir o que não podia sentir”. Contudo, os padrões geriam a antecipação.

Algures aqui, já passa da meia-noite. Há uma enfermeira muito curiosa para saber se é menino ou menina. Há uma ternura nestas pessoas difícil de explicar, é preciso vivê-la para ficar eternamente agradecido sabe-se lá porquê. O turno dela acabava às oito da manhã. Curiosamente, é mais ou menos nessa altura que tudo acontece. A mudança de turno causa algum atraso na reação dos enfermeiros. É possível que o tempo seja maior na minha cabeça do que realmente foi. Mas isso também não interessa muito. Tudo começa mas não começa bem e também não continua bem. O cansaço de todos não estava a ajudar.

Há qualquer coisa de impotência naquilo tudo, sobretudo no meio de 4 pessoas numa sala pequena a tentar ajudar. Quando a dado momento dizem para agarrar nas coisas todas e sair, voltar para a sala de espera porque ela tem de ir ‘lá para cima’, faço que sim, porque só quero que acabe. Não é aquele acabar de falta de pachorra, ou o outro de alívio, é mesmo aquele de só querer que acabe. Não há ansiedade, impaciência, vontade. Apenas queres um release de ternura. Venho cá para fora e não me lembro de que quando dizem que só irei ter de esperar x minutos, são x+x+x+x. Percebo porque dizem isso, se dissessem duas horas naquele momento, ia cair mal. Talvez gritasse. Trinta minutos é quase como esperar pelo metro da linha verde num domingo de manhã. E era domingo de manhã. Ele acabará por vir e não se tem muita pressa. Mas também há outro lado, que é quando te tiram de uma situação que estás a ver pela primeira vez e que não está a correr nada bem, pensas que pode acabar mal. E, até aí, durante aqueles meses todos, nunca pensei que poderia correr mal. Usa-se o telemóvel para ver estatísticas, uma espécie de conforto meh. Serve o que serve na altura, até porque a história da futura avó com o genro que foi dormir a casa da mãe entretém um bocadinho (sem julgamento, há coisas que têm piada por si só). Felizmente, ninguém, sem ser nós os dois – ou três – sabe que aquilo está a acontecer. O presente, naquela solidão momentânea, parecia infinito. E o infinito era só uma coisa a mais.

O ensaio do engano

É importante saber como começou? Às vezes penso nisso e procuro as origens. Se foi numa tarde domingo, num passeio pelo parque. Uma mãe fazia companhia às filhas que estavam a vender alguns brinquedos e acabámos por comprar uma meia dúzia deles por pouquíssimo dinheiro. Entre eles, duas Tartaruga Ninja, o Donatello e o Michelangelo. Não sei se foi aqui, mas por aqui consigo traçar o processo. Depois, a caminho da creche, uma loja tinha uma mochila das Tartarugas Ninja que não lhe saía dos olhos. Mais dia menos dia, veio para casa. Talvez entre uma coisa e outra, e perante muita insistência e o cansaço dessa insistência, uma procura no YouTube meteu a correr uns episódios da série de animação. Não sei como, também descobriu que havia os filmes.

Entretanto, vieram as férias em Inglaterra. Das charity shops vieram umas figuras e um livro cheio de histórias das Tartaruga Ninja. Ainda hoje é um favorito ao deitar, não propriamente para se ler as histórias, mas para os dois imitarmos as caras das tartarugas antes de adormecermos. Isto tudo e ele, naquela altura, com dois anos e meio. Talvez seja demais, talvez seja demasiado violento. Talvez. Talvez.

Lembro-me disto a propósito de “The Rehearsal”, seis episódios da melhor ficção científica que vi em anos, a cargo de Nathan Fiedler, um comediante (“Nathan For You” e também tem uma mão no “How To With John Wilson”, ambas bastante recomendáveis). A série, disponível na HBO Max, é toda ensaiada, as personagens são actores, ninguém é apanhado desprevenido. A ideia: se tivéssemos um diretor de palco para ensaiar connosco um momento que iremos viver. Esta é a premissa dada no primeiro episódio, quando Nathan ajuda um homem a descobrir o ambiente, momento e as palavras certas para contar uma verdade a uma companheira da equipa de quiz.

No segundo episódio, uma mulher quer ensaiar a maternidade através de uma solução que Fiedler arranjou: passar por diferentes períodos, até aos 18 anos de idade do suposto filho, em curtos espaços tempos, para perceber se está preparada para a experiência. Ao vê-la de fora, e incapaz de arranjar um pai adequado para desempenhar o papel, Nathan intervém para ser o pai fingido. A partir daqui “The Rehearsal” transforma-se. Desmascara-se como uma série sobre parentalidade. Por vias da ficção científica.

A descrição do modelo do ensaio, às tantas, torna-se numa premissa belíssima de um livro de ficção científica, ou de um episódio de “The Twilight Zone”: e se pudéssemos ensaiar um momento de forma a vivê-lo na perfeição, sem erros? Com o decorrer dos episódios, entra outra premissa: e regressar a um momento que vivemos, através do ensaio, para se perceber onde se falhou e onde, ou o quê, se pode alterar. Dita assim, a ideia é mais simpática do que como o autor a mostra. O que Nathan faz, ao passear pelas obsessões da sua personagem, é lembrar-nos que todos queríamos o mesmo: vivermos obsessivamente o erro até ele deixar de o ser.

Isto transposto para a parentalidade – como “The Rehearsal” o faz – torna-se perverso, porque todo o processo é um acumular de erros, mesmo que não se reconheça. Mesmo quando supostamente se acerta, há a dúvida. Há um comportamento qualquer que encaminha para o erro. Nathan Fiedler olha para esse pedaço existencial da parentalidade e corta-o em camadas muito fininhas, para o tornar ainda mais pesado, perturbador. Dito assim, parece uma série de terror. Não o é. O modo delinquente com que obriga os pais a autoavaliarem-se é primoroso.

Fica-se obcecado com a obsessão do erro: e se eu tivesse feito assim? Se o erro tivesse naquela compra de jardim, talvez tivesse evitado meses de martírio a pensar que se calhar o enfiei num consumo um pouco violento para a idade dele. E, talvez, não tivesse experienciado meses de maravilhosos saltos e cambalhotas na cama e de lutas na brincadeira entre nós. Não sei, não quero saber. No plano de “The Rehearsal” viveríamos sem saber viver, férteis com a constante dúvida da dúvida da dúvida. E infelizes por não abraçarmos o princípio da incerteza. Por isso, é grande ficção científica. E, provavelmente, a única série sobre parentalidade que vale a pena ver.

A inevitável morte de Buzz Lightyear, o brinquedo

Logo no início, há um aviso na introdução de “Buzz Lightyear”, em que menciona de relance a presença de personagem em “Toy Story” e produz a ideia de que aquilo que se irá ver é o filme que deu origem ao boneco “Buzz Lightyear” em “Toy Story”. Uma agenda metanarrativa, que mete uma história dentro da história, para criar uma história de origens. Só que, nesse processo, enterra o mais interessante em Buzz Lightyear: ele deixa de ser um brinquedo, ou um boneco, passa a ser uma pessoa, mesmo que animada.

O problema não é de agora. Mas também não foi imediato à compra da Disney, no início de 2006. Foi progressivo e com o surgimento da Disney+ começou a ser mais notável. Até aí, a Pixar mantinha a sua identidade algo intacta, agora claramente caminha numa metamorfose para entrar dentro da fábrica de emoções da Disney, onde há uma vontade, questionável, de as tornar relacionáveis, equiparáveis, terrenas, entediantes.

É fácil olhar para “Buzz Lightyear” e ver nele um bom filme de aventuras espaciais e compará-lo a outras façanhas recentes da Disney, seja no universo da Marvel ou Star Wars. Só que isso não é um elogio, é um desprestígio para a Pixar. A Pixar, vale a pena relembrar, é responsável por “Toy Story”, “À Procura de Nemo”, “Os Incríveis”, toda a saga “Carros”, toda ela uma ode a subgéneros cinematográficos em decadência, “WALL-E”, “Up – Altamente!” e, mais recentemente, “Divertida-Mente”, provavelmente o melhor filme da Pixar, se não nos deixarmos mover pela nostalgia dos primeiros. Obras que, ao longo de duas décadas e meia, ofuscaram a máquina da Disney.

WNos últimos dois anos, com “Buzz Lightyear”, já tivemos 5 filmes da Pixar. Entre 1995 e 2019 foram 21. O Disney+ foi lançado em finais de 2019. O ritmo da produção já havia avançado nos 2010s, o que era perceptível por já existirem franchises instalados e haver toda uma máquina mais oleada. O presente, contudo, parece mais focado na produção de conteúdos (é esta palavra, “conteúdos”, que começa a espetar a faca, lentamente). E isso tem tido efeitos na qualidade e, sobretudo, nas temáticas. A Pixar, de repente, deixou de ser adulta, deixou de falar de sentimentos, emoções com propriedade. Há excepções, claro, como “Soul” (2020), mas mesmo “Soul” parece uma ideia rejeitada durante a produção de “Divertida-Mente”.

E eis então “Buzz Lightyear”, a história de origens do brinquedo, no filme onde Buzz não é um boneco, mas um humano, um Ranger do Espaço. Um filme que existe para preencher todos os espaços em branco que existiam no “Toy Story” original e nas sequelas, isto é, as motivações da personagem, o seu passado, quem é Zurg – o seu inimigo -, para que servem os Rangers do Espaço e o que realmente fazem aqueles botões todas no fato de Buzz para lá da sua qualidade de boneco.

O filme é satisfatório. Apesar de ser emocionalmente infantil, usa uma série de conceitos científicos em prol do divertimento, deixando-os acessíveis à percepção de quem nunca ouviu falar daquelas coisas: mas isso não é estranho à Pixar. Mas enquanto adulto, que viu “Toy Story” na sua estreia, há algo que morre com “Buzz Lightyear”. Até agora, Buzz era um brinquedo, uma personagem que pelas suas características dava muito espaço para a imaginação.

E, enquanto brinquedo, era uma projeção no ecrã de um objecto relacionável com a nossa infância. E a sua relação inicial com Woody – e a sua evolução – é uma universal, que existiu também entre os nossos brinquedos de infância e, posteriormente, passaram para a vida. Isto não é saudosismo de uma infância eterna, ou síndroma de Peter Pan, mas há um lugar para Buzz Lightyear e esse lugar é dentro de “Toy Story”, enquanto boneco.

De repente, “Para o infinito e mais além” perde o sentido. Em “Toy Story” ele existia, era fundamentado, relacionável com a ideia do impossível-possível, que tem lugar nas mãos dos grandes que existem na nossa imaginação. Isso era tangível ao Buzz boneco, como era tangível a qualquer um dos seus amigos: eles próprios já faziam o impossível, existiam. E iam mais além para continuarem a ser possíveis. Isso era possível enquanto boneco, brinquedo.

Não tem de ser a minha viagem

No universo do multiverso da dificuldade em aceitar a realidade tal e qual como ela é, irritam-me expressões como “pai de segunda viagem”. De repente, pai deixa de ser pai e passa a ser um tipo que quer fazer um percurso. Um que existe, mas vamos lá metê-lo em primeiro plano como se fosse uma experiência Odisseias. Não é. Nem é uma caminhada.

Parece uma daquelas coisas inventadas por um gajo qualquer que quis arranjar uma maneira de dizer que faz mais em casa do que realmente faz: é isso que “pai de segunda viagem” grita. Até porque quem o menciona para usufruto próprio, mete as palavras com aquele orgulho que não se deve subestimar. Como se quisesse dizer, a todo o momento, uma não me bastava, tinha de fazer duas. Viagens.

Se o pai é o tipo que quer, ou vai fazer o percurso, o filho/a é então esse percurso. Uma espécie de aventura como se fosse uma escalada com os amigos ou aquele fim de semana na neve anual. A infantilização da linguagem tem destas coisas, de repente um ser deixa de ser “o meu segundo” para a primazia estar na figura do pai, o “pai de segunda viagem”. Um detalhe, mas um que indirectamente explora aquela ideia de que afinal isto é sobre nós, não é sobre eles.

A desumanização do pai, da figura do pai, e da relação com o filho. Essa coisa da “viagem”, tirando do sítio um e outro. Feliz por ser pai, do primeiro, do segundo, agora quando me metem em viagens, torço o nariz. É feio, deselegante, infantil e uma fuga para a frente da real responsabilidade. Não nos metam em viagens, eufemismos, e formas de mascarar a presença do pai. Esta realidade não precisa disso.  

A alegria de não saber

Quando o dia-a-dia está altamente condicionado pela informação, antecipação, controlo e uma absurda necessidade de ilusão em que há algum poder nisso tudo, advém alguma alegria no não saber. Decidir não saber qual é o sexo da criança não é um gesto de nostalgia ou coragem, é uma forma de abraçar a facilidade de tomar decisões exactamente pela ideia da ausência de controlo.

Enquanto pais, cedo percebemos que o melhor que poderíamos fazer seria não tornar isto de ser pai/mãe uma coisa sobre nós. Um filho não é um atrelado ou um objecto de decoração, uma extensão da nossa personalidade – ser -, uma projeção dos nossos medos ou, pior, um desejo de molde, o quão esculpimos para antecipar qualquer erro que tenha decorrido na nossa vida. Um filho não é nada disso. É uma pessoa e, com isso, vem uma personalidade.

Muito do que está acima não tem nada a ver com o não saber o sexo da criança. Mas ajuda. O não saber não é um exercício de vaidade ou – mais um vez – um exercício de nostalgia. Aliás, não é um exercício. Também não tem a ver com a escolha de cores para o que quer que seja, e também não tem a ver com a obsessão pela escolha de cores neutras para tornar toda uma existência mais neutra. Tem a ver com encarar o bebé como uma pessoa. Mais do que um rapaz ou rapariga.

Noutro nível, ajuda a tomar a decisões. Porque o não saber é libertador, por não existir um conceito limitador daquilo que se pode fazer e, também, por não afunilar as nossas obsessões ainda antes do bebé nascer. Não se compra tudo a dobrar, mas também não se retarda decisões. E, por experiência, bloqueia as ofertas – especialmente vindas da família – de coisas desnecessárias, repetidas ou excessivas. E, por consequência, após o nascimento, facilita dizer às pessoas um não sobre qualquer intenção de compra: de alguma forma, o não saber, nesta sociedade, nos torna menos vulneráveis. E, com isso, ganha-se músculo.

E, ao segundo filho, aprende-se com alguns erros do primeiro. Por exemplo, não revelar quaisquer hipóteses de nomes durante todo processo. Não por causa das opiniões, mas porque se ficarem no conforto do casal é ainda mais fácil assimilarem a ideia de uma pessoa e gerir quaisquer expectativas que possam existir. Ou, como fiz desta vez, comprar duas garrafas de whisky para celebrar ao invés de uma, cada uma a começar com a letra de um dos nomes possíveis. Não que faça muita diferença, é só uma desculpa para comprar duas. É sempre bom ter algum reforço para o que aí vem.

A nossa necessidade de estacionar mal é impossível de satisfazer

Durante quase toda a minha vida, especialmente durante a vida adulta, vivi em casas pequenas. Viver com pouco espaço ensina uma série de coisas se houver disposição para aprender. Saltando o capítulo do “deixar de ter tanta coisa” – não sou um exemplo, já fui pior -, uma delas é essencial e envolve a palavra espaço: criar espaço.

A casa não cresce com o tempo. Mesmo que as coisas não se acumulem, uma nova vida, ou duas, ocupam e precisam de mais espaço. Ainda antes de ser pai já me divertia com essa ideia de criar espaço, encontrar formas de encaixar tudo de forma funcional – sobretudo na cozinha -, para rentabilizar o que se tem, economizar tempo e tornar todo o necessário próximo.

Por vezes, as minhas soluções Tetris de funcionalismo criam alguma insatisfação. Na maior parte das vezes demoram tempo a assentar. Quando resultam bem, libertam 8 metros quadrados da sala e cria-se um espaço porreiro para o miúdo brincar em sintonia com o resto da sala.

Só que isto não é um texto sobre decoração ou soft skills. É sobre o atrofio de ver como os outros pais estacionam os carrinhos de bebé no parque das creches. Seria de esperar, num ambiente onde muita gente está com pressa, mal dormida, cansada, atrasada para qualquer coisa, irritada com qualquer coisa, onde há uma concordância de mal-estar matinal na cabeça da maioria dos pais, que o botão de “vou fazer isto bem para não atrapalhar a vida de alguém para que depois não me aconteça também” estivesse on. É raro.

Os problemas de estacionamento e de estacionamento em segunda fila existem para lá das ruas e dos passeios. A surpresa não vem de isso também ser uma cena com os carrinhos de bebé, mas pela falta de empatia numa situação onde basicamente estão todos ao mesmo nível – com as mesmas dores de costas e olheiras – e existe um desapego pela camaradagem funcional e um à-vontade de quem espera que o problema seja resolvido por outro.

Faz confusão como os pais não têm a Abordagem Tetris à situação. Muitos preferem aquela coisa de deixar o carro mais acessível, na esperança de que 6/8 horas depois ainda esteja lá (não vai estar); outros alimentam a ideia de que se os deixarem assim ao calhas, alguém o arrumará (não vai acontecer, o mais provável é que alguém lhe dê um biqueiro ou um encontrão com o seu carrinho ao tentar fazer o mesmo, ou seja, deixá-lo assim ao calhas); e ainda há aqueles que o colocam numa certa posição, de forma a que ocupe mais espaço do que o necessário, para depois ser mais fácil de manobrar na saída (é provável que também leve um biqueiro, lamento).

Acredito que qualquer uma das pessoas destes três grupos não aja de má-fé. É tramado pensar bem quando a cabeça às vezes já está feito num oito ao início da manhã ou ser mais fácil agir em conformidade com a irritação / stress / exaustão que se sente. Mas da mesma forma que se faz mal, também se consegue fazer bem.

Por isso, há pais que genuinamente se esforçam a criar uma ordem. Que conhecem a dimensão do carrinho, a agilidade e limites, e colocam-no de uma forma que permita alguém meter outro carro confortavelmente ao seu lado ou atrás, dando espaço suficiente para gerir eventuais saídas de qualquer carrinho. São pais que percebem a beleza daquele caos inexplicável provocado por quem não procura uma organização, mas que percebem que a harmonia e funcionalidade, mesmo nas coisas mais idiotas do dia-a-dia, dão pequenas alegrias e poupanças de tempo. E fazem-no bem para que os outros sigam o seu exemplo, não de um ponto de vista de superioridade moral – ou algo do género – mas com a enfática beleza de quem sabe que estamos todos a ter um dia de merda. Porque mesmo que esteja a ser um dia ok até então, passa a ser de merda quando se tem de navegar por entre as decisões de estacionamento de todos aqueles que se estão a cagar para nós.

Temos de falar sobre o Chase

O Marshall é um dálmata que exerce funções de bombeiro e de paramédico. A Skye é uma cockapoo que pilota um helicóptero, ajudando a equipa no ar. O Rocky é um rafeiro que conduz um camião do lixo que se transforma num barco rebocador; acresce – talvez o mais importante – a mensagem ecológica que carrega por via da reciclagem. O Rubble é um bulldog que conduz um bulldozer com diversas utilidades no campo da construção civil de urgência. Zuma é um labrador retriever que conduz um aerobarco, ajuda o grupo nas missões aquáticas. Chase é um pastor alemão que tem um megafone e uma rede. E ainda há Ryder, o rapaz de dez anos que tem acesso a equipamento militar. “Paw Patrol”, ou “Patrulha Pata”.

Está em todo o lado, um daqueles confrontos inevitáveis com a realidade. Fácil dizer que não se vai ceder, tarde demais quando se deu uma aberta. Há muito a dizer sobre esta série da Nickelodeon, que tem mais de 200 episódios emitidos (e a contar), está no ar desde 2013 e um espólio musical que faz um esforço tremendo para chegar a uma mão cheia de canções e com uma duração aproximada de cinco minutos. A fórmula pegou tão bem que nem precisou de dar aquele carinho extra. Até porque isso vem com o merchandise.

O título básico, elementar, cliché, deste texto é inevitável. Chase é um problema. Numa equipa onde os colegas utilizam veículos que, por associação, indicam utilidade e uma certa ideia de sujar as mãos para garantir que o trabalho se faz, Chase combina o menino disciplinado e cumpridor e uma figura de autoritarismo. Uma aberração. Reforçando: os seus instrumentos são um megafone e uma rede.

Pronto para gritar e apanhar Ryder, sir!

A coisa seria menos grave se Chase não fosse tão nuclear. Chase surge no centro das imagens, durante a acção está no meio, destacado à frente, do grupo. Por construção de imaginário, ele tornou-se na cara de “Paw Patrol”. Pode-se alegar que os miúdos preferem o Marshall, pelo atitude trapalhona que lhe dá uma certa graça e carinho pelo à-vontade com que o faz. Contudo, Marshall simboliza o menino pateta do grupo, aquele de quem toda a gente se ri. A simpatia – ou preferência – surge por fazer rir, ser o totó da turma, aquele que não se quer ser. Já Chase, experiencia-se como uma ambição. Um patético macha-alfo.

Patético e imbecil. Por hierarquia biológica, perde o papel de líder, esse cabe a Ryder, o humano de dez anos que é o pão para toda a obra para qualquer coisa que aconteça em Adventure Bay. Chase sabe disso. E quer mostrar aos outros – e a nós – que sabe mesmo disso, daí duas das suas catchphrases transparecerem aquela obediência cega, de quem quer escalar socialmente: “Ready for action Ryder, sir!” e “Chase on the Case”. Chase quer o lugar do Ryder. Não luta por ele – caramba, é um programa para miúdos – mas é o seu sonho.

Dessa obediência nasce a figura autoritária. Veste azul-polícia, de todas as fardas transforma-se naquela que causa menos empatia porque se relaciona diretamente com a autoridade. E, ao contrário dos colegas, as suas ferramentas carecem de utilidade própria. Provavelmente nenhum dos outros poderia pilotar um helicóptero como Skye, ou ter a formação de bombeiro como Marshall, operar um bulldozer como Rubble. Qualquer um sabe usar um megafone ou atirar uma rede. Estes itens definem a vulgaridade de Chase, só que o facto de ser tão central, dominante em termos de imagética, ofusca a ausência de reais virtudes. Chase é o yes man por excelência. O gajo que eventualmente será CEO por usar um megafone.

Numa equipa com qualidades tão específicas – e funcionais -, Chase existe como retrato de um passado que insiste em existir. É o douchebag por excelência, mascarado de admirável e obediente cão num universo para crianças. Sempre que ele alcança o microfone para dizer algo completamente inútil, ou atira a rede para prender alguém, perde-se alguma inocência. Está longe de ser o líder que a sua imagem pretende projectar, é um cão cujo talento se esgota na pretensão de autoridade, retrógrado num programa para os putos de hoje, com uma ambição desfasada das suas qualidades e, inevitavelmente, um tremendo imbecil. E chama-se Chase. Óbvio, pois.  

Pai do/a…

O processo acontece rápido e nem se dá conta de quando começou. Ou até se dá, porque nas primeiras vezes estranha-se e, depois, não se entranha, aceita-se. Enfim, há males maiores. Contudo, ninguém tem a delicadeza de perguntar se se está à vontade de se deixar de ser quem é. Em vários momentos, ainda antes do parto, torna-se claro de que as coisas irão mudar significativamente. Sim, o conceito de noite – ou de dormir – passará a inexistente; a vontade de começar a calçar umas Birkenstock sobe exponencialmente porque é só enfiar nos pés e, feitas as contas, é menos um par de meias diário para lavar, estender, arrumar. E até são super confortáveis. Isso qualquer pessoa avisa, com um descrédito de que comigo não vai ser assim.

O que falha neste à-vontade de partilhar é a notificação de que iremos deixar de ser uma pessoa para passar a ser uma pessoa de alguém. Os sinais estão lá, conforme os meses passam e as consultas se aproximam da recta final, frases e denominações ajustam-se. Vêm das bocas dos médicos, das enfermeiras, das farmacêuticas, de quem atende o telefone do outro lado para marcar uma consulta, um exame. Apesar de acontecer sem aviso, é um aviso para o que aí vem. De que não será só aquela micropessoa (depois mini, salto para pequena, eventualmente uma super ou hiperpessoa) a sugar a personalidade, a existência, a paciência, a vida. A sociedade encarrega-se daquela palmadinha nas costas. Do nada, perdes o nome, passas a ser o “Pai do/a”.

Facilita a identificação. Afinal, nos sítios onde se é “Pai do/a” ninguém precisa de saber o nome do pai. Para quê? No fim de contas, é só uma cara com uma função, uma espécie de cumpridor de uma tarefa do ponto A ao ponto B, por isso, até lhe fazem um favor: ao despersonificá-lo abstraem-no precisamente do seu carácter utilitário. A coisa é estranha e é aceite porque a vida se torna nisso mesmo, a dado momento, deixa-se de ser a pessoa, para se passar a ser o “Pai do/a”. Uma dedicação, portanto.

Ao fim de meses, anos, o ouvir diário de “Pai do/a” reforça essa dedicação, como uma servitude por uma causa maior – e é. O transtorno vem nas relações, por exemplo, nas creches. Outros pais e mães, que se veem todos os dias, têm um nome, mas naquele contexto não. São os “Pais do/a” ou as “Mães do/a”. Cria-se um conforto com isso, também não são pessoas, são “Pais”, Mães”, pior, “Pais do/a” ou “Mães do/a” iguais a nós e, se calhar, o não saber o nosso nome – mas o dos nossos filhos – é o que torna as relações tão estranhamente afáveis.

Até que se passa a ver os pais noutros contextos, em actividades que envolvem as crianças e os pais das crianças. Cria-se uma abertura para os pais/mães extravasarem essa existência de despersonalização e ganharem um nome. Ou não. Pode-se perpetuar isso. Como eu. Não que não queira saber o nome deles – quanto mais não seja porque facilita, aproxima, reduz as viagens no diálogo. Acontece que adoro alimentar esta ideia de que deixámos de ser aquela pessoa para existir enquanto dedicação.