O gajo que não pariu, parte 1

Quando o tempo se torna insuportável, penso em coisas sem importância. Na sala de espera recordo algumas histórias das horas anteriores, como a do pai que desmaiou durante o parto e proporcionou um momento de ‘para tudo’ para ser socorrido momento. Os amigos riam-se. Eu não caía nessa, penso a determinado momento. Nunca se sabe. Na outra noite, sexta-feira, havia uma família inteira que panicava por uma coisa que parecia banal. Às oito e picos da manhã de domingo, os meus pensamentos eram interrompidos por uma futura avó que chegava às urgências para ir para o lado da filha. Aparentemente, o genro saiu a meio da noite para ir dormir a casa da mãe. Não tem piada. Mas tem.

Há as caras que me lembro, há um sem número delas das quais não tenho memória. Pais que estavam à espera, como eu, ou pessoas cuja urgência era impossível de decifrar quando só se espera ver pessoas com grandes barrigas nas urgências de uma maternidade. Também há aquele pai que depois revi, uns dias mais tarde, nos corredores da MAC. Estava à espera, como eu. Correu tudo bem. Nas memórias da presença das outras pessoas, há o som à distância de mulheres a parir, bebés a nascer e um não sei quê de felicidade naquele momento. Só faltávamos nós.

Algures na sexta-feira à tarde estávamos a comprar sapatos numa feira no Arco do Cego, entre a última consulta na MAC – quando induziram o parto, sem permissão – e a última aula pré-parto no centro de saúde da Alameda. Ainda não tínhamos planos para jantar, decidimos parar em casa, eu ia comprar uma frigideira porreira, antiaderente, para uns hambúrgueres. Ali pelo meio, ia arranjar uns parafusos para colocar o chuveiro na casa-de-banho renovada.

Assim foi. Tudo a postos, vaga ideia de que aquele poderia ser o último jantar a dois. Antes disso, mãos à obra na casa-de-banho, porque os últimos dias têm sido chatíssimos sem o chuveiro na parede. Não queremos isso daqui a uns dias. Lembro-me de que não foi fácil de furar o azulejo, não por culpa dele, por falta de prática minha. Também demorou mais do que a aselhice permite. E recordo-me de que quando dou por terminado e arrumo as ferramentas, começam as primeiras contrações. Sabíamos que tínhamos de esperar, ser pacientes, etc., etc., etc.. Mas começou a ser evidente que não íamos comer os hambúrgueres. Não os comemos. Hoje usamos essa frigideira para fazer panquecas. Bem presente nas nossa vidas.

Contamos o tempo entre, ficamos na dúvida se sim ou não. Continuamos a contar, apontamos coisas num papel. Ficamos com a ideia de que estão a ficar mais próximas. Talvez estivessem, saímos de casa. Fazemos como planeado, vamos a pé para a MAC. Afinal, diziam, andar a pé, ajudava. Parecia possível, e foi. Esperamos, esperamos, às tantas já estamos fartos do desespero cumulativo daquela família inteira (simpatiquíssimos, contudo, a futura avó vidente não acertou no sexo da criança), mas lá esperamos. Já não há paciência para contar períodos entre, parece tudo tão aleatório e, em simultâneo, tão certo. Horas depois de uma triagem, lá somos vistos. Contrações sim, mas a dilatação era insuficiente para ficarmos lá. Remédio? Andar.

E lá voltamos a pé para casa, às três e tal da manhã, sem jantar, e com aquela incerteza de que se calhar, quando chegarmos, temos de voltar. Tentamos dormir. Ela não consegue, eu digo que, para bem dos dois, é melhor eu dormir. Agora quando olho para trás, sinto esse momento como profundamente egoísta e um pouco como o gajo que foi dormir a casa da mãe. Mas bem, eu estava ali, pronto a ser acordado. E aquelas poucas horinhas permitiram-me ficar acordado durante as 40 + seguintes.

Sábado não foi normal. Gritos das contrações em casa e uma séria incerteza sobre o que deveríamos fazer. Voltar não parecia certo, arriscaríamos a ficar uma vida na sala de espera e um regresso desanimado e incerto. O tempo dessa anormalidade foi avassalador, esperar pelo inevitável tem o seu quê de desesperante. Sobretudo quando se aproximam 24 horas de contrações. Lá temos um sinal, voltamos para a MAC. Não me recordo como fomos, é possível que tenha sido a pé.

O cenário mudou. É perceptível que na primeira triagem sabem o que é urgente e o que é urgente. Ela é logo vista e inicia-se todo o processo. Passa das oito da noite. Faltam umas 12 horas para ele nascer. Começam os tempos de espera sozinho na sala de espera, levar a epidural é só x minutos, mas na verdade é x+x+x+x. Lá passa o tempo, eu entro, estamos juntos. A noite foi a acompanhar os padrões das máquinas na sala, eram uma forma de me manter acordado e de ver o que não podia ver. Não vou fingir que também era uma forma de “sentir o que não podia sentir”. Contudo, os padrões geriam a antecipação.

Algures aqui, já passa da meia-noite. Há uma enfermeira muito curiosa para saber se é menino ou menina. Há uma ternura nestas pessoas difícil de explicar, é preciso vivê-la para ficar eternamente agradecido sabe-se lá porquê. O turno dela acabava às oito da manhã. Curiosamente, é mais ou menos nessa altura que tudo acontece. A mudança de turno causa algum atraso na reação dos enfermeiros. É possível que o tempo seja maior na minha cabeça do que realmente foi. Mas isso também não interessa muito. Tudo começa mas não começa bem e também não continua bem. O cansaço de todos não estava a ajudar.

Há qualquer coisa de impotência naquilo tudo, sobretudo no meio de 4 pessoas numa sala pequena a tentar ajudar. Quando a dado momento dizem para agarrar nas coisas todas e sair, voltar para a sala de espera porque ela tem de ir ‘lá para cima’, faço que sim, porque só quero que acabe. Não é aquele acabar de falta de pachorra, ou o outro de alívio, é mesmo aquele de só querer que acabe. Não há ansiedade, impaciência, vontade. Apenas queres um release de ternura. Venho cá para fora e não me lembro de que quando dizem que só irei ter de esperar x minutos, são x+x+x+x. Percebo porque dizem isso, se dissessem duas horas naquele momento, ia cair mal. Talvez gritasse. Trinta minutos é quase como esperar pelo metro da linha verde num domingo de manhã. E era domingo de manhã. Ele acabará por vir e não se tem muita pressa. Mas também há outro lado, que é quando te tiram de uma situação que estás a ver pela primeira vez e que não está a correr nada bem, pensas que pode acabar mal. E, até aí, durante aqueles meses todos, nunca pensei que poderia correr mal. Usa-se o telemóvel para ver estatísticas, uma espécie de conforto meh. Serve o que serve na altura, até porque a história da futura avó com o genro que foi dormir a casa da mãe entretém um bocadinho (sem julgamento, há coisas que têm piada por si só). Felizmente, ninguém, sem ser nós os dois – ou três – sabe que aquilo está a acontecer. O presente, naquela solidão momentânea, parecia infinito. E o infinito era só uma coisa a mais.