O gajo que não pariu, parte 2

A dúvida assalta-me nos últimos meses. Após tanto assédio, ainda teria agarrado na esfregona. Não que me orgulhe. Também não me envergonho. Aquela terça-feira prometia ser diferente. O primeiro dia de verão. Chovia. O nascimento planeado para o final da semana. Nesse primeiro dia de verão iríamos à primeira consulta na maternidade. Ver como as coisas estavam, ansiosos para que a experiência não tivesse toques imprevistos como da outra vez.

Nos meses, nos anos anteriores antecipámos esse momento. Foi algo que marcou, talvez por manchar o que se antecipa como novo, perfeito. Surgiram sinais na noite anterior ao primeiro dia de verão. A intensidade do primeiro parto camuflou um pouco tudo aquilo acontecia. A esta distância a incerteza virou evidência, prova de um processo em movimento.

Havia algo marcado para esse dia. Uma consulta. Com isso em mente, decidi não ir trabalhar. No inconsciente havia outra coisa qualquer que dizia que era melhor assim, volta para casa. E assim foi, depois de deixar o mais velho na creche, voltei para casa. Tudo igual. Contrações, muito espaçadas. Pouco tinha mudado nas últimas dez horas.

Nesses dias ainda escrevia na sala, junto à janela. A secretária que entretanto ficou ocupada por Lego era ainda a nossa mesa de trabalho. Sentei-me nela, ao computador, a fazer coisas enquanto a hora de almoço não chegava, para sairmos. A manhã existia num permanente cinzento com chuva contínua. É assim que me lembro. Estava calor.

Trabalho irrequieto. Inconstante e preocupado. Vou confirmar se está tudo bem. Está. A esta distância é facílimo rir com esses momentos. Depois de uma dessas vezes, oiço um grito. Eu e a sogra vamos a correr para o quarto.

(A sogra estava connosco nesses dias. Veio para cá dar apoio, caso o nascimento se desse a uma hora inconveniente. Seria bom ter alguém por perto para dar um olho no mais velho.)

Está em pé, há dor. Entre os gemidos, no telemóvel dela ouve-se um diálogo acompanhado por música de uma app de relaxamento. É muito irritante. Parece estar próximo, mas não assim tão próximo. Digo que temos de nos preparar para sair, ir para a maternidade. Recolho as coisas, a sogra, mais sensata, experiente, analisa melhor a situação. Um de nós, não me lembro de quem, apercebe-se que há um líquido no chão. As águas rebentaram.

(Há uns dias, com visitas aqui em casa, brincávamos com essa situação. De que a esfregona já estava por perto porque, ao ver o líquido no chão, achei que o melhor a fazer naquela altura seria limpar o chão. Não há que procurar algo obsessivo aqui, apenas parecia o melhor a fazer. Confesso que a memória me falha nesse detalhe. É possível que sim. Muito possível.)

Com ou sem esfregona, o cenário coloca-me em alerta. Vivemos num quarto andar, sem elevador. A urgência tornou-se evidente, como também se tornou claro de que não conseguiríamos descer as escadas sozinhos. Nesse momento sou assaltado por uma certeza, num misto das notícias da altura, das falhas das maternidades, das urgências, e, apesar de viver na capital, assumo que a melhor forma de resolver uma dúvida naquele momento seria ligar para o 112. Assim faço. Explico a situação, peço desculpa em caso de estar a fazer algo de errado. Percebem que não sei bem o que estou a dizer, as palavras falham-me, estou atrapalhado. Os paramédicos metem-se a caminho.

Volto ao quarto. Cheira a urgência. Há qualquer coisa a acontecer, tudo está a desenvolver-se tão rápido que é impossível entrar em negação. Aquela app continua, irrita-me, e no meio de tanta urgência, pergunto se a posso desligar. Não. Havia ali qualquer coisa de tranquilizante para ela. Continuo a preparar as coisas para sair. Vivemos ao lado de um hospital central. Tocam à porta.

Os paramédicos chegam cheio de equipamento que parece meio inusitado, de reanimação. Ao telefone perceberam que a coisa estava mais avançada. Face à realidade de um parto iminente, um deles olha para mim e questiona-me porque é que deixámos as coisas chegar àquele ponto. Explico-lhe que foi de repente. E foi.

Percebo-o. Ficou conhecido cá em casa como o Rami Malek. Um querido, que reagia a uma situação incontrolável com aquela sinalização portuguesa de reagir com despropósito a uma situação imprevisível. Percebo-o, ao ver as coisas assim deve ter-lhe passado pela cabeça que tínhamos resolvido ter a criança em casa e às tantas panicámos. Não. Apenas aconteceu tudo muito rápido. O colega, mais controlado na reação “estes freaks de merda”, parecia perceber que eu estava a contar a verdade.

(Uma hora mais tarde, na maternidade, antes de se despedir de mim, olha-me nos olhos, sem parar – não há tempo para parar – e regressa ao assunto: “não entendo como deixaram as coisas chegar a este ponto”.)

O Malek percebe que a coisa está iminente e diz que temos de sair de casa, ir para a maternidade. Pede-me para agarrar algo para a cobrir e apanhar as nossas coisas, assim o faço. Aqui há uma branca. Saí do quarto para dar espaço e só me lembro de estar à saída da cozinha, pronto para a cobrir com o roupão. É o que me lembro de estar a fazer quando de repente a vejo parada no meio do corredor e a sogra a dizer “the baby is coming out”.

Não há imagem para este momento. Estou atrás, oiço as palavras e oiço algo a cair no chão, num misto de pancada seca e líquido espalhado.

A percepção vira inimiga do tempo. Num instante, meio segundo, um segundo, dois segundos, pouco interessa, imensa coisa ocorre entre um foda-se mental, uma batida que falha e uma palidez repentina. Há a imagem dela agarrada ao móvel do corredor, há o som de várias coisas a tocarem no chão. Não há uma imagem dela a nascer para este mundo. Quis ser rápida para não ficar registado. Entre os piores cenários possíveis que passam pela cabeça naquele instante, o foda-se mental que perdura na incredulidade e toda a impotência, há um som.

Ela está viva. Ela está viva.

Num ápice o Rami Malek apanha-a do chão, corre para o quarto, pede-me algo para a cobrir. Chegam os bombeiros. Eu nem sabia que os bombeiros vinham aí. Claro que vinham, era preciso uma ambulância para nos levar para a maternidade. Isto antes do nascimento. Agora ainda mais. Chegam num momento inoportuno, no certo.

Todos no quarto. O Malek a segurar no bebé e a apertar o cordão umbilical (quebrou na queda). O colega a fazer o mesmo na outra ponta. A minha sogra com a filha na cama. Saio do quarto para dar espaço, um dos bombeiros está sempre a entrar e a sair, à procura de algo. Num cenário de mobília, chão e paredes cheios de sangue e outras coisas mais, sinto que tenho de sair dali.

Não sei quanto tempo passou. Mas no metro entre o quarto e a cozinha o meu corpo processa isto tudo e começo a chorar. Com a mesma brevidade, paro, está tudo ainda a andar tão rápido, que não dá para processar. Passados estes meses todos, ainda não o fiz.

Nem nos apercebermos se era rapaz ou rapariga. A minha sogra lembra-se de perguntar. O Malek também não tinha reparado. Espreita pela manta que a cobria. Não é novidade neste texto. É uma menina. O meu corpo ameaça, outra vez, processar a coisa. Não consegue. Há um bombeiro que continua a entrar e a sair de casa, está à procura de algo que não encontra.

Volto ao quarto e o Malek lembra-se que é preciso registar o momento. O colega tira uma foto. Claro que tirámos uma foto. O Malek até fez um V com os dedos. Tudo está sobre controle, mas o bombeiro continua a entrar e a sair. Eles falam, eu não consigo perceber o que se passa. Não pergunto. Volto a sair do quarto, asseguro-me que tenho tudo o que precisamos de levar.

Nesse momento olho para o chão, há sangue e tudo o mais por todo o lado. Vejo o bombeiro a entrar sem encontrar o que precisa. Olho para o chão e não paro de o imaginar a escorregar.

Penso que já aconteceu o suficiente. O que ninguém precisa é que alguém escorregue ao sair de casa com o bebé nos braços. A imagem não me sai da cabeça, sem saber se está escorregadio ou não, não consigo deixar de olhar para o chão e pensar que algo pode acontecer.

Sou um tipo inseguro, não diagnosticado. Por isso, sou assaltado pela ideia de “como é que isto vai parecer”. A minha filha acabou de nascer, em casa, toda ela foi projectada para o chão. Parece estar bem, todos parecem estar bem, mas ela acabou de ser projectada para o chão. E estou ali preocupado se devo ou não levar a esfregona ao chão.

Qual a importância de limpar? A imagem de alguém escorregar manifesta a projecção de um receio qualquer, para todos os efeitos, está longe de algo concreto. Talvez a imagem estivesse a funcionar como uma escapatória para toda a cena, um falso pontapé para a frente para cobrir uma série de outras merdas. Um rodapé de página desnecessário. Ainda não me sentei para falar sobre isso.

O que perderia em limpar? Afinal, teria de ser feito. Assumir a tarefa naquele momento até poderia resolver eventuais problemas. Se calhar, nem era uma tarefa, mas uma manifestação de toda a minha impotência naquele momento. Salvaguardar um acidente parecia ser a coisa mais útil que poderia fazer naquele momento.

Útil, essa praga dos tempos que se vivem. Porque é que até ali eu teria de ser útil? Como se não pudesse apenas ser, ser um pai outra vez, a lidar com toda a situação ou a não lidar com ela de todo. Ou estar só feliz por estar tudo bem. Sem ter de estar feliz e ser útil. Tudo ao mesmo tempo. Parecia um luxo poder ser só uma coisa, um sentimento, naquele momento. No meio de todas as certezas e incertezas.

Enchi o balde. Agarrei na esfregona. Pelo menos, assim, ninguém vai cair. Não foi um trabalho bem feito. Ficou seco. O bombeiro chegou momentos depois com o que procurava. Estávamos prontos para sair. Tirámos outra fotografia à porta da maternidade. Com todos, desta vez sem V.