- Lês livros e forças-te a ler artigos, fazes um esforço extra para seres melhor. Ouves com atenção o que os outros pais dizem sobre a cabeça dos seus miúdos bilingues e de como são uma esponja. Anotas a menção àquela altura em que dão um salto e vives isso como uma referência para te convenceres de que estás a fazer tudo bem;
- Não há fórmula mágica. Com o segundo filho afinas a coisa;
- Dizes às pessoas de que o inglês é muito melhor para aquelas coisas chatas como “no”, “enough” e “stop”, enfim, as cenas de merda. E é, mas é muito refrescante – anos mais tarde – quando mudas para português e se cria todo um novo leque para dizer barbaridades. Abre-se uma janela que nunca irás conseguir fechar;
- Mas há uns dias apercebi-me que “enough” é mesmo melhor. Porque dizer “chega” hoje em dia, na rua, não é saudável e pode estimular conversas anti-vax que não queres ter;
- Pensas que por haver duas línguas podes dizer mais palavrões e irão passar despercebidos. Até “for fuck sake” e “foda-se” entrarem no vocabulário do miúdo;
- Disse “foda-se” muitas vezes. Houve muitos dias com a paciência no limite. Hoje em dia nem “fogo” posso dizer porque ele pergunta porque é que estou a dizer “foda-se”;
- Acho giro quando ele diz “foda-se”. Sobretudo porque diz “fooooooda-se”, como eu, quando acontece merda;
- Espero que não o diga na escola;
- Especialistas dizem que é provável que ele precise de terapia da fala. Possível, mas primeiro vou metê-lo em várias atividades desportivas para ver se no futuro há possibilidade de retorno financeiro;
- Estou a brincar, foda-se;
- Agora a sério, reconheces que foste preguiçoso. Se calhar falar maioritariamente uma só língua em casa para facilitar as coisas não foi grande ideia;
- Nunca iria ser. Os outros pais com os outros miúdos bilingues fazem exatamente o contrário. Lembras-te sempre dos olhos radiantes deles quando falam nisso;
- Dizes a ti mesmo que a partir de agora vai ser melhor.
Quanto custa a mobilidade numa capital europeia, perdão, Lisboa num Sábado? Um guia em vinte passos. (II)
1 – Vivemos no centro de Lisboa;
2 – Hoje saímos com o carrinho de bebé porque precisávamos de ir à baixa comprar calçado de verão para os miúdos;
3 – Não temos carro e acreditamos que, por vivermos no centro de uma capital, não deveríamos mesmo precisar de um;
4 – Quando saímos do ginásio com os miúdos decidimos que o melhor era apanhar o metro do que fazer aqueles vinte minutos a pé. Afinal estavam mais de 25 graus e o mais velho ou teria de andar – e eventualmente ficar cansado antes do almoço – ou eu teria de levá-lo às cavalitas;
5 – Temos de andar até à entrada sul, porque a entrada norte da estação de metro está fechada aos fins de semana;
6 – Chegamos à entrada, precisamos de quatro mãos para levantar o carrinho de bebé e carregá-lo escadas abaixo, porque, enfim, não há outra opção;
7 – Chegamos ao átrio da estação, temos de esperar para que uma funcionária nos facilite a passagem com o carrinho de bebé. A entrada mais larga só permite saídas;
8 – Passado o canal de entrada, temos de carregar outra vez o carrinho escadas abaixo;
9 – Não sabemos quanto tempo temos de estar à espera;
10 – Entretanto chega um grupo de turistas, mete-se mesmo à nossa frente, à nossa volta, limitando-nos as opções de movimento. Sonsice nossa? Nem por isso, mas por razões cardíacas não acho particularmente saudável estar com um miúdo de quatro anos à beira da linha do comboio;
11 – Entretanto chegam outros pais com um carrinho, percebendo que não conseguem passar por aquele grupo de turistas, recuam;
12 – Passam dez minutos, ainda não chegou o metro;
13 – Olha, chegou agora;
14 – Vem cheio;
15 – O grupo de turistas entra sem qualquer preocupação se estávamos primeiro ou não;
16 – Não conseguimos entrar por aquela porta. Vamos procurar outra nas proximidades, com um carrinho de bebé e um miúdo de quatro anos;
17 – Quase todas as carruagens estão cheias. Lá encontramos uma na segunda metade do metropolitano. Quando vamos a entrar, o maquinista começa a fechar as portas, mesmo vendo que nós estávamos a tentar entrar – depois de esperar dez minutos por um metro, não devia custar dar uns segundos para os passageiros com dificuldades tentarem entrar (até porque não há outro a metro a chegar dentro de trinta segundos). A porta fecha com o carrinho a meio, o maquinista repreende-nos com uma valente buzinadela. Abre-se outra vez e, neste momento, por qualquer razão desistimos de tentar entrar e esperar pelo próximo;
18 – Os outros pais com o carrinho também não conseguiram entrar. Tal como nós, vão ter de esperar pelo próximo;
19 – O próximo é só daqui a 13:30 minutos. Desistimos, fazemos aqueles 15/20 minutos a pé, com 25 graus e um puto de 20 quilos às costas. Não deveria ser necessário explicar mas aqui vai: é melhor meter os miúdos em movimento do que estar 23 minutos (10+13) à espera na gare de um metro.
20 – Lisboa é uma capital europeia. Percebia-se a urgência em fechar as portas se houvesse um metro de 2 em 2 minutos. Não há. A linha verde serve indirectamente o aeroporto e, aos sábados de manhã, tem menos regularidade do que um comboio urbano numa capital que considere os seus cidadãos. Os metropolitanos que passam estão demasiados cheios e isso deveria ser óbvio para se perceber de que a regularidade actual não é suficiente. O custo para quem vive na cidade e decide usar os transportes públicos é imenso. Sobretudo para quem escolhe, por consciência, não ter viatura própria e acreditar que podemos ser servidos por transportes públicos. Manhãs como estas – que são muito comuns – deitam-nos abaixo. Também, já agora, não serve os turistas, preocupação primária da cidade nos últimos anos. Dez minutos à espera de um transporte no centro da cidade é uma vida inteira. Se esse transporte for o metro, são duas vidas. Há os problemas graves, como este, e há aqueles pequeninos, facílimos de resolver. E que, talvez, se quem tomasse decisões usasse os transportes públicos já teria agido: marcar no chão os locais onde as portas se abrem. Para não ser um jogo de adivinha e para quando, numa situação como a nossa, em que deve ser prioritário entrar – por diversas razões, a principal sendo a facilidade de circulação de pessoas num transporte rápido -, sabermos onde estar e não deixar que um grupo de pessoas tome o nosso lugar.
Quanto custa fechar um parque infantil?
Vivi a minha vida toda em Lisboa, adepto e muito utilizador dos serviços públicos e uma pessoa que acredita mais na utilidade do empirismo do que em salas de reuniões e folhas de Excel. Tenho para mim a crença de que a gestão pública é deficiente pela falta de calo quotidiano de quem toma decisões. Chamem-lhe de populista, taxista, o que quiserem. Os transportes públicos são o exemplo fácil. A ausência de soluções para serem mesmo um serviço público (seja regularidade, horários, conexões, condições ou mesmo a lógica simples de prestação de um serviço) deriva da preferência da maioria pelo veículo privado (associada à ideia liberal de que só o pobre usa transportes públicos, um princípio péssimo): e não vale a pena entrar no jogo mental de que foi a falta de oferta que gerou esta procura.
Com filhos, essa sensação de que a gestão do espaço e aparelhos públicos é péssima adensou-se pela falta de parques infantis, piscinas públicas e, no geral, falta de coisas para fazer ao ar livre (e não só, mas isso é outra conversa) – em condições – numa cidade com bom tempo, espaço e um potencial enorme. Há parques bons e bem mantidos, claro que há, mas no geral a oferta é parca e medíocre. A generalidade dos parques são pequenos, com falta de aparelhos (e, por vezes, os que há têm falta de manutenção), sem casas de banho, bebedouros ou até um quiosque onde se possa estar, facilitar o encontro entre pais e tornar o lazer mais agradável e não algo que envolve pensar em mil coisas diferentes antes de sair de casa para lá das mil coisas que já se têm de pensar. Eu improviso, os meus amigos improvisam, os pais dos filhos amigos dos meus filhos improvisam, mas é muito comum a conversa resvalar para como em Lisboa a oferta de parques infantis é péssima. Também é nesta altura que nos lembramos de que Lisboa é uma capital europeia. Falta essa capital europeia na prática, Lisboa pode ser muito mais do que comunicação de mupi.
Há parques bons – e limpos – com quiosques. Geralmente nas freguesias mais abastadas (pode-se discutir o porquê, mas não cabe aqui). Mas a generalidade é má. Há parques tão pequenos, mas tão pequenos, que até nos levam a questionar o porquê de existirem. Mas depois lembramo-nos da realidade da oferta e até ficamos gratos por aqueles 25 metros quadrados existirem. Beggars can’t be choosers.
Acredito piamente de que a falta de oferta destas estruturas se deve a falta de utilização destes espaços por quem manda, decide. Não só quem realmente tem o poder, mas também quem está perto dele. Não é o papão do governo, do chefe, mas de todos que entram e saem dos gabinetes. Seja porque não precisa – o gostinho das segundas casas em Portugal – ou porque os tempos livres com os miúdos são despejados para casa dos avós (por n razões, sem julgamento).
O que me leva a escrever isto hoje tem a ver exactamente com esta falta de utilização por quem decide. Domingo passado fui ao parque infantil do Parque Eduardo Sétimo. Não é perto da nossa casa, mas temos um autocarro que nos leva do ponto A ao B sem grande esforço. Nesta lógica de mobilidade, sem viatura privada, este parque infantil é talvez o que melhor nos serve, seja porque está limpo (por exemplo, não tem ratazanas mortas que ficam a decompor durante duas semanas à entrada do parque infantil, como no Campos Mártires da Pátria), por ter uma dimensão acima da média ou por estar localizado numa zona muito verde e com opções caso nos fartemos do parque (há umas quantas árvores porreiras para trepar em diferentes zonas do parque). E também há a Estufa Fria, que foi onde acabámos por ir no Domingo porque o parque estava fechado.
Chegámos às 10:30, saímos da zona por volta das 14. Durante esse tempo todo, o parque infantil esteve fechado porque estavam a decorrer umas filmagens dentro do parque infantil. Num domingo, de manhã. Vimos muitas crianças impossibilitadas de brincar, vimos muitas crianças a chorar (e digo isto sem vontade de puxar o drama da coisa) e vimos muitos pais impossibilitados de brincar com os seus filhos, muitos, talvez, o único tempo na semana que têm para realmente brincar com os filhos.
O parque infantil do Parque Eduardo VII é daqueles parques em Lisboa que vejo sempre cheio de vida ao fim de semana. E, também, daqueles onde vejo pais (de pai) com os filhos, casais juntos a brincarem com os filhos (e não só um, geralmente a mãe, como em muitos outros parques) e uma agradável ausência de avós (nada contra, mas se ainda não perceberam a ideia, vão lá atrás). Também vejo pais em grupo, a falar, a conviver, porque é um parque com um quiosque, casa-de-banho, bebedouros e sombra. Não é especialmente grande, mas a junção disto tudo é obra em Lisboa, sobretudo numa zona tão central e, em teoria, fácil de chegar. Já fiz aniversários dos meus filhos lá.
Tirar isto aos filhos e aos pais a um domingo de manhã para filmagens é criminoso. Uma absurda falta de bom-senso e um belo exemplo da falta de decisores que façam vida no terreno, vivam a cidade e percebam as faltas, o que falha, porque falha e como podemos melhorar. E como podemos ser felizes na rua, ao ar livre, juntar, criar, ter um domingo em família e com amigos que aproveite as coisas naturais que a cidade tem para oferecer.
Fechar num parque a um domingo para filmagens? Qual é o valor que paga isso e será que esse valor justifica não se ter passado essa decisão para um dia da semana ou, simplesmente, ter cagado no assunto?
A sério, quem decide estas merdas?
Fazer bem
Após o nascimento do primeiro filho, aconteceram uma série de viagens de táxis/Uber, algumas com, outras sem o bebé. Seja por ele estar lá ou implicarem destino/partida da maternidade, a conversa movimentava-se com o tema filhos. Houve de tudo um pouco, boas e más experiências. Uma ficou na memória, a do motorista que começa a falar do filho de quatro anos e de como as coisas se complicam agora, “agora entra a educação”.
Verdade. Até então nunca me tinha ocorrido que era preciso educar um filho. Tinha mais com que me preocupar. Por exemplo, ele nascer bem. A mãe estar bem (antes, durante e depois). Naqueles primeiros dias assegurar-me que ele não morria. Entretanto, tive que garantir que ele não se matava (ou como colocava na altura “ensiná-lo a não morrer”) com qualquer coisa que estivesse a aprender, desde comer a perceber que, se cair da janela do quarto andar, o pai “não o pode arranjar”, como faz aos brinquedos. Enquanto isto acontecia, preocupei-me que ele aprendesse a brincar, a não ter medo de brincar e, dentro dos possíveis, que pode fazer as coisas como quer. Os limites são negociáveis.
Coisas que considero sobrevivência básica: física dele, física minha, mental dele, mental minha. Educação passa por muitas outras coisas, no fundo, regras. A construção da obsessão com o fazer bem. Isso não vem com a educação, não vem com um bebé, existe em muita coisa. Com um bebé desenvolve-se com a pressão exterior (família, amigos, outros) e pelo lugar onde os pais se colocam, pelas formações que têm, livros que leem, conselhos que procuram pela procura do fazer bem. Como se a fórmula fosse única, o caminho definido e pouco individual e aquele tipo de pressão fosse necessário.
Com o crescimento dos filhos a obsessão pelo fazer bem torna-se descontrolada com a educação: natural que a pressão passe para a educação. São as boas maneiras, as regras de conduta, as formas de estar, o saber estar, o incómodo que causam aos outros (metemos um ecrã à frente para não incomodar e ficarem tão sossegadinhos). Os moralismos do costume. Coisas com que os adultos se preocupam, sobretudo os outros adultos. Quer-se que a coisa encaixe bem, que siga uma ordem que agrade mais aos outros do que ao ser que está a crescer, a aprender. Qualquer desobediência a essa ordem parece um caminho sem retorno. Já todos estivemos aí.
Desde aquele dia que penso, com uma regularidade pouco saudável, nas palavras do motorista e temo pelo dia em que entra a educação. Possível que já tenha começado e me tenha ultrapassado a mil. Ocorre-me esse lugar de desvantagem cada vez que o oiço a dizer um “foda-se” ou, o muito complexo e admirável “for fuck sake”. Sempre tão oportunos e bem metidos que me sinto incapaz de o contrariar (e também de não me rir) e de me juntar a ele nesta arte de não fazer bem. Tem-me educado a não fazer bem. A não pensar nisso, a deixar para trás. A irmã reforçou o processo e convence todos os dias de que, se calhar, todos juntos, até estamos a fazer bem.
O gajo que não pariu, parte 2
A dúvida assalta-me nos últimos meses. Após tanto assédio, ainda teria agarrado na esfregona. Não que me orgulhe. Também não me envergonho. Aquela terça-feira prometia ser diferente. O primeiro dia de verão. Chovia. O nascimento planeado para o final da semana. Nesse primeiro dia de verão iríamos à primeira consulta na maternidade. Ver como as coisas estavam, ansiosos para que a experiência não tivesse toques imprevistos como da outra vez.
Nos meses, nos anos anteriores antecipámos esse momento. Foi algo que marcou, talvez por manchar o que se antecipa como novo, perfeito. Surgiram sinais na noite anterior ao primeiro dia de verão. A intensidade do primeiro parto camuflou um pouco tudo aquilo acontecia. A esta distância a incerteza virou evidência, prova de um processo em movimento.
Havia algo marcado para esse dia. Uma consulta. Com isso em mente, decidi não ir trabalhar. No inconsciente havia outra coisa qualquer que dizia que era melhor assim, volta para casa. E assim foi, depois de deixar o mais velho na creche, voltei para casa. Tudo igual. Contrações, muito espaçadas. Pouco tinha mudado nas últimas dez horas.
Nesses dias ainda escrevia na sala, junto à janela. A secretária que entretanto ficou ocupada por Lego era ainda a nossa mesa de trabalho. Sentei-me nela, ao computador, a fazer coisas enquanto a hora de almoço não chegava, para sairmos. A manhã existia num permanente cinzento com chuva contínua. É assim que me lembro. Estava calor.
Trabalho irrequieto. Inconstante e preocupado. Vou confirmar se está tudo bem. Está. A esta distância é facílimo rir com esses momentos. Depois de uma dessas vezes, oiço um grito. Eu e a sogra vamos a correr para o quarto.
(A sogra estava connosco nesses dias. Veio para cá dar apoio, caso o nascimento se desse a uma hora inconveniente. Seria bom ter alguém por perto para dar um olho no mais velho.)
Está em pé, há dor. Entre os gemidos, no telemóvel dela ouve-se um diálogo acompanhado por música de uma app de relaxamento. É muito irritante. Parece estar próximo, mas não assim tão próximo. Digo que temos de nos preparar para sair, ir para a maternidade. Recolho as coisas, a sogra, mais sensata, experiente, analisa melhor a situação. Um de nós, não me lembro de quem, apercebe-se que há um líquido no chão. As águas rebentaram.
(Há uns dias, com visitas aqui em casa, brincávamos com essa situação. De que a esfregona já estava por perto porque, ao ver o líquido no chão, achei que o melhor a fazer naquela altura seria limpar o chão. Não há que procurar algo obsessivo aqui, apenas parecia o melhor a fazer. Confesso que a memória me falha nesse detalhe. É possível que sim. Muito possível.)
Com ou sem esfregona, o cenário coloca-me em alerta. Vivemos num quarto andar, sem elevador. A urgência tornou-se evidente, como também se tornou claro de que não conseguiríamos descer as escadas sozinhos. Nesse momento sou assaltado por uma certeza, num misto das notícias da altura, das falhas das maternidades, das urgências, e, apesar de viver na capital, assumo que a melhor forma de resolver uma dúvida naquele momento seria ligar para o 112. Assim faço. Explico a situação, peço desculpa em caso de estar a fazer algo de errado. Percebem que não sei bem o que estou a dizer, as palavras falham-me, estou atrapalhado. Os paramédicos metem-se a caminho.
Volto ao quarto. Cheira a urgência. Há qualquer coisa a acontecer, tudo está a desenvolver-se tão rápido que é impossível entrar em negação. Aquela app continua, irrita-me, e no meio de tanta urgência, pergunto se a posso desligar. Não. Havia ali qualquer coisa de tranquilizante para ela. Continuo a preparar as coisas para sair. Vivemos ao lado de um hospital central. Tocam à porta.
Os paramédicos chegam cheio de equipamento que parece meio inusitado, de reanimação. Ao telefone perceberam que a coisa estava mais avançada. Face à realidade de um parto iminente, um deles olha para mim e questiona-me porque é que deixámos as coisas chegar àquele ponto. Explico-lhe que foi de repente. E foi.
Percebo-o. Ficou conhecido cá em casa como o Rami Malek. Um querido, que reagia a uma situação incontrolável com aquela sinalização portuguesa de reagir com despropósito a uma situação imprevisível. Percebo-o, ao ver as coisas assim deve ter-lhe passado pela cabeça que tínhamos resolvido ter a criança em casa e às tantas panicámos. Não. Apenas aconteceu tudo muito rápido. O colega, mais controlado na reação “estes freaks de merda”, parecia perceber que eu estava a contar a verdade.
(Uma hora mais tarde, na maternidade, antes de se despedir de mim, olha-me nos olhos, sem parar – não há tempo para parar – e regressa ao assunto: “não entendo como deixaram as coisas chegar a este ponto”.)
O Malek percebe que a coisa está iminente e diz que temos de sair de casa, ir para a maternidade. Pede-me para agarrar algo para a cobrir e apanhar as nossas coisas, assim o faço. Aqui há uma branca. Saí do quarto para dar espaço e só me lembro de estar à saída da cozinha, pronto para a cobrir com o roupão. É o que me lembro de estar a fazer quando de repente a vejo parada no meio do corredor e a sogra a dizer “the baby is coming out”.
Não há imagem para este momento. Estou atrás, oiço as palavras e oiço algo a cair no chão, num misto de pancada seca e líquido espalhado.
A percepção vira inimiga do tempo. Num instante, meio segundo, um segundo, dois segundos, pouco interessa, imensa coisa ocorre entre um foda-se mental, uma batida que falha e uma palidez repentina. Há a imagem dela agarrada ao móvel do corredor, há o som de várias coisas a tocarem no chão. Não há uma imagem dela a nascer para este mundo. Quis ser rápida para não ficar registado. Entre os piores cenários possíveis que passam pela cabeça naquele instante, o foda-se mental que perdura na incredulidade e toda a impotência, há um som.
Num ápice o Rami Malek apanha-a do chão, corre para o quarto, pede-me algo para a cobrir. Chegam os bombeiros. Eu nem sabia que os bombeiros vinham aí. Claro que vinham, era preciso uma ambulância para nos levar para a maternidade. Isto antes do nascimento. Agora ainda mais. Chegam num momento inoportuno, no certo.
Todos no quarto. O Malek a segurar no bebé e a apertar o cordão umbilical (quebrou na queda). O colega a fazer o mesmo na outra ponta. A minha sogra com a filha na cama. Saio do quarto para dar espaço, um dos bombeiros está sempre a entrar e a sair, à procura de algo. Num cenário de mobília, chão e paredes cheios de sangue e outras coisas mais, sinto que tenho de sair dali.
Não sei quanto tempo passou. Mas no metro entre o quarto e a cozinha o meu corpo processa isto tudo e começo a chorar. Com a mesma brevidade, paro, está tudo ainda a andar tão rápido, que não dá para processar. Passados estes meses todos, ainda não o fiz.
Nem nos apercebermos se era rapaz ou rapariga. A minha sogra lembra-se de perguntar. O Malek também não tinha reparado. Espreita pela manta que a cobria. Não é novidade neste texto. É uma menina. O meu corpo ameaça, outra vez, processar a coisa. Não consegue. Há um bombeiro que continua a entrar e a sair de casa, está à procura de algo que não encontra.
Nesse momento olho para o chão, há sangue e tudo o mais por todo o lado. Vejo o bombeiro a entrar sem encontrar o que precisa. Olho para o chão e não paro de o imaginar a escorregar.
Penso que já aconteceu o suficiente. O que ninguém precisa é que alguém escorregue ao sair de casa com o bebé nos braços. A imagem não me sai da cabeça, sem saber se está escorregadio ou não, não consigo deixar de olhar para o chão e pensar que algo pode acontecer.
Sou um tipo inseguro, não diagnosticado. Por isso, sou assaltado pela ideia de “como é que isto vai parecer”. A minha filha acabou de nascer, em casa, toda ela foi projectada para o chão. Parece estar bem, todos parecem estar bem, mas ela acabou de ser projectada para o chão. E estou ali preocupado se devo ou não levar a esfregona ao chão.
Qual a importância de limpar? A imagem de alguém escorregar manifesta a projecção de um receio qualquer, para todos os efeitos, está longe de algo concreto. Talvez a imagem estivesse a funcionar como uma escapatória para toda a cena, um falso pontapé para a frente para cobrir uma série de outras merdas. Um rodapé de página desnecessário. Ainda não me sentei para falar sobre isso.
O que perderia em limpar? Afinal, teria de ser feito. Assumir a tarefa naquele momento até poderia resolver eventuais problemas. Se calhar, nem era uma tarefa, mas uma manifestação de toda a minha impotência naquele momento. Salvaguardar um acidente parecia ser a coisa mais útil que poderia fazer naquele momento.
Útil, essa praga dos tempos que se vivem. Porque é que até ali eu teria de ser útil? Como se não pudesse apenas ser, ser um pai outra vez, a lidar com toda a situação ou a não lidar com ela de todo. Ou estar só feliz por estar tudo bem. Sem ter de estar feliz e ser útil. Tudo ao mesmo tempo. Parecia um luxo poder ser só uma coisa, um sentimento, naquele momento. No meio de todas as certezas e incertezas.
O gajo que não pariu, parte 1
Quando o tempo se torna insuportável, penso em coisas sem importância. Na sala de espera recordo algumas histórias das horas anteriores, como a do pai que desmaiou durante o parto e proporcionou um momento de ‘para tudo’ para ser socorrido momento. Os amigos riam-se. Eu não caía nessa, penso a determinado momento. Nunca se sabe. Na outra noite, sexta-feira, havia uma família inteira que panicava por uma coisa que parecia banal. Às oito e picos da manhã de domingo, os meus pensamentos eram interrompidos por uma futura avó que chegava às urgências para ir para o lado da filha. Aparentemente, o genro saiu a meio da noite para ir dormir a casa da mãe. Não tem piada. Mas tem.
Há as caras que me lembro, há um sem número delas das quais não tenho memória. Pais que estavam à espera, como eu, ou pessoas cuja urgência era impossível de decifrar quando só se espera ver pessoas com grandes barrigas nas urgências de uma maternidade. Também há aquele pai que depois revi, uns dias mais tarde, nos corredores da MAC. Estava à espera, como eu. Correu tudo bem. Nas memórias da presença das outras pessoas, há o som à distância de mulheres a parir, bebés a nascer e um não sei quê de felicidade naquele momento. Só faltávamos nós.
Algures na sexta-feira à tarde estávamos a comprar sapatos numa feira no Arco do Cego, entre a última consulta na MAC – quando induziram o parto, sem permissão – e a última aula pré-parto no centro de saúde da Alameda. Ainda não tínhamos planos para jantar, decidimos parar em casa, eu ia comprar uma frigideira porreira, antiaderente, para uns hambúrgueres. Ali pelo meio, ia arranjar uns parafusos para colocar o chuveiro na casa-de-banho renovada.
Assim foi. Tudo a postos, vaga ideia de que aquele poderia ser o último jantar a dois. Antes disso, mãos à obra na casa-de-banho, porque os últimos dias têm sido chatíssimos sem o chuveiro na parede. Não queremos isso daqui a uns dias. Lembro-me de que não foi fácil de furar o azulejo, não por culpa dele, por falta de prática minha. Também demorou mais do que a aselhice permite. E recordo-me de que quando dou por terminado e arrumo as ferramentas, começam as primeiras contrações. Sabíamos que tínhamos de esperar, ser pacientes, etc., etc., etc.. Mas começou a ser evidente que não íamos comer os hambúrgueres. Não os comemos. Hoje usamos essa frigideira para fazer panquecas. Bem presente nas nossa vidas.
Contamos o tempo entre, ficamos na dúvida se sim ou não. Continuamos a contar, apontamos coisas num papel. Ficamos com a ideia de que estão a ficar mais próximas. Talvez estivessem, saímos de casa. Fazemos como planeado, vamos a pé para a MAC. Afinal, diziam, andar a pé, ajudava. Parecia possível, e foi. Esperamos, esperamos, às tantas já estamos fartos do desespero cumulativo daquela família inteira (simpatiquíssimos, contudo, a futura avó vidente não acertou no sexo da criança), mas lá esperamos. Já não há paciência para contar períodos entre, parece tudo tão aleatório e, em simultâneo, tão certo. Horas depois de uma triagem, lá somos vistos. Contrações sim, mas a dilatação era insuficiente para ficarmos lá. Remédio? Andar.
E lá voltamos a pé para casa, às três e tal da manhã, sem jantar, e com aquela incerteza de que se calhar, quando chegarmos, temos de voltar. Tentamos dormir. Ela não consegue, eu digo que, para bem dos dois, é melhor eu dormir. Agora quando olho para trás, sinto esse momento como profundamente egoísta e um pouco como o gajo que foi dormir a casa da mãe. Mas bem, eu estava ali, pronto a ser acordado. E aquelas poucas horinhas permitiram-me ficar acordado durante as 40 + seguintes.
Sábado não foi normal. Gritos das contrações em casa e uma séria incerteza sobre o que deveríamos fazer. Voltar não parecia certo, arriscaríamos a ficar uma vida na sala de espera e um regresso desanimado e incerto. O tempo dessa anormalidade foi avassalador, esperar pelo inevitável tem o seu quê de desesperante. Sobretudo quando se aproximam 24 horas de contrações. Lá temos um sinal, voltamos para a MAC. Não me recordo como fomos, é possível que tenha sido a pé.
O cenário mudou. É perceptível que na primeira triagem sabem o que é urgente e o que é urgente. Ela é logo vista e inicia-se todo o processo. Passa das oito da noite. Faltam umas 12 horas para ele nascer. Começam os tempos de espera sozinho na sala de espera, levar a epidural é só x minutos, mas na verdade é x+x+x+x. Lá passa o tempo, eu entro, estamos juntos. A noite foi a acompanhar os padrões das máquinas na sala, eram uma forma de me manter acordado e de ver o que não podia ver. Não vou fingir que também era uma forma de “sentir o que não podia sentir”. Contudo, os padrões geriam a antecipação.
Algures aqui, já passa da meia-noite. Há uma enfermeira muito curiosa para saber se é menino ou menina. Há uma ternura nestas pessoas difícil de explicar, é preciso vivê-la para ficar eternamente agradecido sabe-se lá porquê. O turno dela acabava às oito da manhã. Curiosamente, é mais ou menos nessa altura que tudo acontece. A mudança de turno causa algum atraso na reação dos enfermeiros. É possível que o tempo seja maior na minha cabeça do que realmente foi. Mas isso também não interessa muito. Tudo começa mas não começa bem e também não continua bem. O cansaço de todos não estava a ajudar.
Há qualquer coisa de impotência naquilo tudo, sobretudo no meio de 4 pessoas numa sala pequena a tentar ajudar. Quando a dado momento dizem para agarrar nas coisas todas e sair, voltar para a sala de espera porque ela tem de ir ‘lá para cima’, faço que sim, porque só quero que acabe. Não é aquele acabar de falta de pachorra, ou o outro de alívio, é mesmo aquele de só querer que acabe. Não há ansiedade, impaciência, vontade. Apenas queres um release de ternura. Venho cá para fora e não me lembro de que quando dizem que só irei ter de esperar x minutos, são x+x+x+x. Percebo porque dizem isso, se dissessem duas horas naquele momento, ia cair mal. Talvez gritasse. Trinta minutos é quase como esperar pelo metro da linha verde num domingo de manhã. E era domingo de manhã. Ele acabará por vir e não se tem muita pressa. Mas também há outro lado, que é quando te tiram de uma situação que estás a ver pela primeira vez e que não está a correr nada bem, pensas que pode acabar mal. E, até aí, durante aqueles meses todos, nunca pensei que poderia correr mal. Usa-se o telemóvel para ver estatísticas, uma espécie de conforto meh. Serve o que serve na altura, até porque a história da futura avó com o genro que foi dormir a casa da mãe entretém um bocadinho (sem julgamento, há coisas que têm piada por si só). Felizmente, ninguém, sem ser nós os dois – ou três – sabe que aquilo está a acontecer. O presente, naquela solidão momentânea, parecia infinito. E o infinito era só uma coisa a mais.
O ensaio do engano
É importante saber como começou? Às vezes penso nisso e procuro as origens. Se foi numa tarde domingo, num passeio pelo parque. Uma mãe fazia companhia às filhas que estavam a vender alguns brinquedos e acabámos por comprar uma meia dúzia deles por pouquíssimo dinheiro. Entre eles, duas Tartaruga Ninja, o Donatello e o Michelangelo. Não sei se foi aqui, mas por aqui consigo traçar o processo. Depois, a caminho da creche, uma loja tinha uma mochila das Tartarugas Ninja que não lhe saía dos olhos. Mais dia menos dia, veio para casa. Talvez entre uma coisa e outra, e perante muita insistência e o cansaço dessa insistência, uma procura no YouTube meteu a correr uns episódios da série de animação. Não sei como, também descobriu que havia os filmes.
Entretanto, vieram as férias em Inglaterra. Das charity shops vieram umas figuras e um livro cheio de histórias das Tartaruga Ninja. Ainda hoje é um favorito ao deitar, não propriamente para se ler as histórias, mas para os dois imitarmos as caras das tartarugas antes de adormecermos. Isto tudo e ele, naquela altura, com dois anos e meio. Talvez seja demais, talvez seja demasiado violento. Talvez. Talvez.
Lembro-me disto a propósito de “The Rehearsal”, seis episódios da melhor ficção científica que vi em anos, a cargo de Nathan Fiedler, um comediante (“Nathan For You” e também tem uma mão no “How To With John Wilson”, ambas bastante recomendáveis). A série, disponível na HBO Max, é toda ensaiada, as personagens são actores, ninguém é apanhado desprevenido. A ideia: se tivéssemos um diretor de palco para ensaiar connosco um momento que iremos viver. Esta é a premissa dada no primeiro episódio, quando Nathan ajuda um homem a descobrir o ambiente, momento e as palavras certas para contar uma verdade a uma companheira da equipa de quiz.
No segundo episódio, uma mulher quer ensaiar a maternidade através de uma solução que Fiedler arranjou: passar por diferentes períodos, até aos 18 anos de idade do suposto filho, em curtos espaços tempos, para perceber se está preparada para a experiência. Ao vê-la de fora, e incapaz de arranjar um pai adequado para desempenhar o papel, Nathan intervém para ser o pai fingido. A partir daqui “The Rehearsal” transforma-se. Desmascara-se como uma série sobre parentalidade. Por vias da ficção científica.
A descrição do modelo do ensaio, às tantas, torna-se numa premissa belíssima de um livro de ficção científica, ou de um episódio de “The Twilight Zone”: e se pudéssemos ensaiar um momento de forma a vivê-lo na perfeição, sem erros? Com o decorrer dos episódios, entra outra premissa: e regressar a um momento que vivemos, através do ensaio, para se perceber onde se falhou e onde, ou o quê, se pode alterar. Dita assim, a ideia é mais simpática do que como o autor a mostra. O que Nathan faz, ao passear pelas obsessões da sua personagem, é lembrar-nos que todos queríamos o mesmo: vivermos obsessivamente o erro até ele deixar de o ser.
Isto transposto para a parentalidade – como “The Rehearsal” o faz – torna-se perverso, porque todo o processo é um acumular de erros, mesmo que não se reconheça. Mesmo quando supostamente se acerta, há a dúvida. Há um comportamento qualquer que encaminha para o erro. Nathan Fiedler olha para esse pedaço existencial da parentalidade e corta-o em camadas muito fininhas, para o tornar ainda mais pesado, perturbador. Dito assim, parece uma série de terror. Não o é. O modo delinquente com que obriga os pais a autoavaliarem-se é primoroso.
Fica-se obcecado com a obsessão do erro: e se eu tivesse feito assim? Se o erro tivesse naquela compra de jardim, talvez tivesse evitado meses de martírio a pensar que se calhar o enfiei num consumo um pouco violento para a idade dele. E, talvez, não tivesse experienciado meses de maravilhosos saltos e cambalhotas na cama e de lutas na brincadeira entre nós. Não sei, não quero saber. No plano de “The Rehearsal” viveríamos sem saber viver, férteis com a constante dúvida da dúvida da dúvida. E infelizes por não abraçarmos o princípio da incerteza. Por isso, é grande ficção científica. E, provavelmente, a única série sobre parentalidade que vale a pena ver.
A inevitável morte de Buzz Lightyear, o brinquedo
Logo no início, há um aviso na introdução de “Buzz Lightyear”, em que menciona de relance a presença de personagem em “Toy Story” e produz a ideia de que aquilo que se irá ver é o filme que deu origem ao boneco “Buzz Lightyear” em “Toy Story”. Uma agenda metanarrativa, que mete uma história dentro da história, para criar uma história de origens. Só que, nesse processo, enterra o mais interessante em Buzz Lightyear: ele deixa de ser um brinquedo, ou um boneco, passa a ser uma pessoa, mesmo que animada.
O problema não é de agora. Mas também não foi imediato à compra da Disney, no início de 2006. Foi progressivo e com o surgimento da Disney+ começou a ser mais notável. Até aí, a Pixar mantinha a sua identidade algo intacta, agora claramente caminha numa metamorfose para entrar dentro da fábrica de emoções da Disney, onde há uma vontade, questionável, de as tornar relacionáveis, equiparáveis, terrenas, entediantes.
É fácil olhar para “Buzz Lightyear” e ver nele um bom filme de aventuras espaciais e compará-lo a outras façanhas recentes da Disney, seja no universo da Marvel ou Star Wars. Só que isso não é um elogio, é um desprestígio para a Pixar. A Pixar, vale a pena relembrar, é responsável por “Toy Story”, “À Procura de Nemo”, “Os Incríveis”, toda a saga “Carros”, toda ela uma ode a subgéneros cinematográficos em decadência, “WALL-E”, “Up – Altamente!” e, mais recentemente, “Divertida-Mente”, provavelmente o melhor filme da Pixar, se não nos deixarmos mover pela nostalgia dos primeiros. Obras que, ao longo de duas décadas e meia, ofuscaram a máquina da Disney.
WNos últimos dois anos, com “Buzz Lightyear”, já tivemos 5 filmes da Pixar. Entre 1995 e 2019 foram 21. O Disney+ foi lançado em finais de 2019. O ritmo da produção já havia avançado nos 2010s, o que era perceptível por já existirem franchises instalados e haver toda uma máquina mais oleada. O presente, contudo, parece mais focado na produção de conteúdos (é esta palavra, “conteúdos”, que começa a espetar a faca, lentamente). E isso tem tido efeitos na qualidade e, sobretudo, nas temáticas. A Pixar, de repente, deixou de ser adulta, deixou de falar de sentimentos, emoções com propriedade. Há excepções, claro, como “Soul” (2020), mas mesmo “Soul” parece uma ideia rejeitada durante a produção de “Divertida-Mente”.
E eis então “Buzz Lightyear”, a história de origens do brinquedo, no filme onde Buzz não é um boneco, mas um humano, um Ranger do Espaço. Um filme que existe para preencher todos os espaços em branco que existiam no “Toy Story” original e nas sequelas, isto é, as motivações da personagem, o seu passado, quem é Zurg – o seu inimigo -, para que servem os Rangers do Espaço e o que realmente fazem aqueles botões todas no fato de Buzz para lá da sua qualidade de boneco.
O filme é satisfatório. Apesar de ser emocionalmente infantil, usa uma série de conceitos científicos em prol do divertimento, deixando-os acessíveis à percepção de quem nunca ouviu falar daquelas coisas: mas isso não é estranho à Pixar. Mas enquanto adulto, que viu “Toy Story” na sua estreia, há algo que morre com “Buzz Lightyear”. Até agora, Buzz era um brinquedo, uma personagem que pelas suas características dava muito espaço para a imaginação.
E, enquanto brinquedo, era uma projeção no ecrã de um objecto relacionável com a nossa infância. E a sua relação inicial com Woody – e a sua evolução – é uma universal, que existiu também entre os nossos brinquedos de infância e, posteriormente, passaram para a vida. Isto não é saudosismo de uma infância eterna, ou síndroma de Peter Pan, mas há um lugar para Buzz Lightyear e esse lugar é dentro de “Toy Story”, enquanto boneco.
De repente, “Para o infinito e mais além” perde o sentido. Em “Toy Story” ele existia, era fundamentado, relacionável com a ideia do impossível-possível, que tem lugar nas mãos dos grandes que existem na nossa imaginação. Isso era tangível ao Buzz boneco, como era tangível a qualquer um dos seus amigos: eles próprios já faziam o impossível, existiam. E iam mais além para continuarem a ser possíveis. Isso era possível enquanto boneco, brinquedo.
Não tem de ser a minha viagem
No universo do multiverso da dificuldade em aceitar a realidade tal e qual como ela é, irritam-me expressões como “pai de segunda viagem”. De repente, pai deixa de ser pai e passa a ser um tipo que quer fazer um percurso. Um que existe, mas vamos lá metê-lo em primeiro plano como se fosse uma experiência Odisseias. Não é. Nem é uma caminhada.
Parece uma daquelas coisas inventadas por um gajo qualquer que quis arranjar uma maneira de dizer que faz mais em casa do que realmente faz: é isso que “pai de segunda viagem” grita. Até porque quem o menciona para usufruto próprio, mete as palavras com aquele orgulho que não se deve subestimar. Como se quisesse dizer, a todo o momento, uma não me bastava, tinha de fazer duas. Viagens.
Se o pai é o tipo que quer, ou vai fazer o percurso, o filho/a é então esse percurso. Uma espécie de aventura como se fosse uma escalada com os amigos ou aquele fim de semana na neve anual. A infantilização da linguagem tem destas coisas, de repente um ser deixa de ser “o meu segundo” para a primazia estar na figura do pai, o “pai de segunda viagem”. Um detalhe, mas um que indirectamente explora aquela ideia de que afinal isto é sobre nós, não é sobre eles.
A desumanização do pai, da figura do pai, e da relação com o filho. Essa coisa da “viagem”, tirando do sítio um e outro. Feliz por ser pai, do primeiro, do segundo, agora quando me metem em viagens, torço o nariz. É feio, deselegante, infantil e uma fuga para a frente da real responsabilidade. Não nos metam em viagens, eufemismos, e formas de mascarar a presença do pai. Esta realidade não precisa disso.
A alegria de não saber
Quando o dia-a-dia está altamente condicionado pela informação, antecipação, controlo e uma absurda necessidade de ilusão em que há algum poder nisso tudo, advém alguma alegria no não saber. Decidir não saber qual é o sexo da criança não é um gesto de nostalgia ou coragem, é uma forma de abraçar a facilidade de tomar decisões exactamente pela ideia da ausência de controlo.
Enquanto pais, cedo percebemos que o melhor que poderíamos fazer seria não tornar isto de ser pai/mãe uma coisa sobre nós. Um filho não é um atrelado ou um objecto de decoração, uma extensão da nossa personalidade – ser -, uma projeção dos nossos medos ou, pior, um desejo de molde, o quão esculpimos para antecipar qualquer erro que tenha decorrido na nossa vida. Um filho não é nada disso. É uma pessoa e, com isso, vem uma personalidade.
Muito do que está acima não tem nada a ver com o não saber o sexo da criança. Mas ajuda. O não saber não é um exercício de vaidade ou – mais um vez – um exercício de nostalgia. Aliás, não é um exercício. Também não tem a ver com a escolha de cores para o que quer que seja, e também não tem a ver com a obsessão pela escolha de cores neutras para tornar toda uma existência mais neutra. Tem a ver com encarar o bebé como uma pessoa. Mais do que um rapaz ou rapariga.
Noutro nível, ajuda a tomar a decisões. Porque o não saber é libertador, por não existir um conceito limitador daquilo que se pode fazer e, também, por não afunilar as nossas obsessões ainda antes do bebé nascer. Não se compra tudo a dobrar, mas também não se retarda decisões. E, por experiência, bloqueia as ofertas – especialmente vindas da família – de coisas desnecessárias, repetidas ou excessivas. E, por consequência, após o nascimento, facilita dizer às pessoas um não sobre qualquer intenção de compra: de alguma forma, o não saber, nesta sociedade, nos torna menos vulneráveis. E, com isso, ganha-se músculo.
E, ao segundo filho, aprende-se com alguns erros do primeiro. Por exemplo, não revelar quaisquer hipóteses de nomes durante todo processo. Não por causa das opiniões, mas porque se ficarem no conforto do casal é ainda mais fácil assimilarem a ideia de uma pessoa e gerir quaisquer expectativas que possam existir. Ou, como fiz desta vez, comprar duas garrafas de whisky para celebrar ao invés de uma, cada uma a começar com a letra de um dos nomes possíveis. Não que faça muita diferença, é só uma desculpa para comprar duas. É sempre bom ter algum reforço para o que aí vem.