Pai do/a…

O processo acontece rápido e nem se dá conta de quando começou. Ou até se dá, porque nas primeiras vezes estranha-se e, depois, não se entranha, aceita-se. Enfim, há males maiores. Contudo, ninguém tem a delicadeza de perguntar se se está à vontade de se deixar de ser quem é. Em vários momentos, ainda antes do parto, torna-se claro de que as coisas irão mudar significativamente. Sim, o conceito de noite – ou de dormir – passará a inexistente; a vontade de começar a calçar umas Birkenstock sobe exponencialmente porque é só enfiar nos pés e, feitas as contas, é menos um par de meias diário para lavar, estender, arrumar. E até são super confortáveis. Isso qualquer pessoa avisa, com um descrédito de que comigo não vai ser assim.

O que falha neste à-vontade de partilhar é a notificação de que iremos deixar de ser uma pessoa para passar a ser uma pessoa de alguém. Os sinais estão lá, conforme os meses passam e as consultas se aproximam da recta final, frases e denominações ajustam-se. Vêm das bocas dos médicos, das enfermeiras, das farmacêuticas, de quem atende o telefone do outro lado para marcar uma consulta, um exame. Apesar de acontecer sem aviso, é um aviso para o que aí vem. De que não será só aquela micropessoa (depois mini, salto para pequena, eventualmente uma super ou hiperpessoa) a sugar a personalidade, a existência, a paciência, a vida. A sociedade encarrega-se daquela palmadinha nas costas. Do nada, perdes o nome, passas a ser o “Pai do/a”.

Facilita a identificação. Afinal, nos sítios onde se é “Pai do/a” ninguém precisa de saber o nome do pai. Para quê? No fim de contas, é só uma cara com uma função, uma espécie de cumpridor de uma tarefa do ponto A ao ponto B, por isso, até lhe fazem um favor: ao despersonificá-lo abstraem-no precisamente do seu carácter utilitário. A coisa é estranha e é aceite porque a vida se torna nisso mesmo, a dado momento, deixa-se de ser a pessoa, para se passar a ser o “Pai do/a”. Uma dedicação, portanto.

Ao fim de meses, anos, o ouvir diário de “Pai do/a” reforça essa dedicação, como uma servitude por uma causa maior – e é. O transtorno vem nas relações, por exemplo, nas creches. Outros pais e mães, que se veem todos os dias, têm um nome, mas naquele contexto não. São os “Pais do/a” ou as “Mães do/a”. Cria-se um conforto com isso, também não são pessoas, são “Pais”, Mães”, pior, “Pais do/a” ou “Mães do/a” iguais a nós e, se calhar, o não saber o nosso nome – mas o dos nossos filhos – é o que torna as relações tão estranhamente afáveis.

Até que se passa a ver os pais noutros contextos, em actividades que envolvem as crianças e os pais das crianças. Cria-se uma abertura para os pais/mães extravasarem essa existência de despersonalização e ganharem um nome. Ou não. Pode-se perpetuar isso. Como eu. Não que não queira saber o nome deles – quanto mais não seja porque facilita, aproxima, reduz as viagens no diálogo. Acontece que adoro alimentar esta ideia de que deixámos de ser aquela pessoa para existir enquanto dedicação.