A inevitável morte de Buzz Lightyear, o brinquedo

Logo no início, há um aviso na introdução de “Buzz Lightyear”, em que menciona de relance a presença de personagem em “Toy Story” e produz a ideia de que aquilo que se irá ver é o filme que deu origem ao boneco “Buzz Lightyear” em “Toy Story”. Uma agenda metanarrativa, que mete uma história dentro da história, para criar uma história de origens. Só que, nesse processo, enterra o mais interessante em Buzz Lightyear: ele deixa de ser um brinquedo, ou um boneco, passa a ser uma pessoa, mesmo que animada.

O problema não é de agora. Mas também não foi imediato à compra da Disney, no início de 2006. Foi progressivo e com o surgimento da Disney+ começou a ser mais notável. Até aí, a Pixar mantinha a sua identidade algo intacta, agora claramente caminha numa metamorfose para entrar dentro da fábrica de emoções da Disney, onde há uma vontade, questionável, de as tornar relacionáveis, equiparáveis, terrenas, entediantes.

É fácil olhar para “Buzz Lightyear” e ver nele um bom filme de aventuras espaciais e compará-lo a outras façanhas recentes da Disney, seja no universo da Marvel ou Star Wars. Só que isso não é um elogio, é um desprestígio para a Pixar. A Pixar, vale a pena relembrar, é responsável por “Toy Story”, “À Procura de Nemo”, “Os Incríveis”, toda a saga “Carros”, toda ela uma ode a subgéneros cinematográficos em decadência, “WALL-E”, “Up – Altamente!” e, mais recentemente, “Divertida-Mente”, provavelmente o melhor filme da Pixar, se não nos deixarmos mover pela nostalgia dos primeiros. Obras que, ao longo de duas décadas e meia, ofuscaram a máquina da Disney.

WNos últimos dois anos, com “Buzz Lightyear”, já tivemos 5 filmes da Pixar. Entre 1995 e 2019 foram 21. O Disney+ foi lançado em finais de 2019. O ritmo da produção já havia avançado nos 2010s, o que era perceptível por já existirem franchises instalados e haver toda uma máquina mais oleada. O presente, contudo, parece mais focado na produção de conteúdos (é esta palavra, “conteúdos”, que começa a espetar a faca, lentamente). E isso tem tido efeitos na qualidade e, sobretudo, nas temáticas. A Pixar, de repente, deixou de ser adulta, deixou de falar de sentimentos, emoções com propriedade. Há excepções, claro, como “Soul” (2020), mas mesmo “Soul” parece uma ideia rejeitada durante a produção de “Divertida-Mente”.

E eis então “Buzz Lightyear”, a história de origens do brinquedo, no filme onde Buzz não é um boneco, mas um humano, um Ranger do Espaço. Um filme que existe para preencher todos os espaços em branco que existiam no “Toy Story” original e nas sequelas, isto é, as motivações da personagem, o seu passado, quem é Zurg – o seu inimigo -, para que servem os Rangers do Espaço e o que realmente fazem aqueles botões todas no fato de Buzz para lá da sua qualidade de boneco.

O filme é satisfatório. Apesar de ser emocionalmente infantil, usa uma série de conceitos científicos em prol do divertimento, deixando-os acessíveis à percepção de quem nunca ouviu falar daquelas coisas: mas isso não é estranho à Pixar. Mas enquanto adulto, que viu “Toy Story” na sua estreia, há algo que morre com “Buzz Lightyear”. Até agora, Buzz era um brinquedo, uma personagem que pelas suas características dava muito espaço para a imaginação.

E, enquanto brinquedo, era uma projeção no ecrã de um objecto relacionável com a nossa infância. E a sua relação inicial com Woody – e a sua evolução – é uma universal, que existiu também entre os nossos brinquedos de infância e, posteriormente, passaram para a vida. Isto não é saudosismo de uma infância eterna, ou síndroma de Peter Pan, mas há um lugar para Buzz Lightyear e esse lugar é dentro de “Toy Story”, enquanto boneco.

De repente, “Para o infinito e mais além” perde o sentido. Em “Toy Story” ele existia, era fundamentado, relacionável com a ideia do impossível-possível, que tem lugar nas mãos dos grandes que existem na nossa imaginação. Isso era tangível ao Buzz boneco, como era tangível a qualquer um dos seus amigos: eles próprios já faziam o impossível, existiam. E iam mais além para continuarem a ser possíveis. Isso era possível enquanto boneco, brinquedo.