O ensaio do engano

É importante saber como começou? Às vezes penso nisso e procuro as origens. Se foi numa tarde domingo, num passeio pelo parque. Uma mãe fazia companhia às filhas que estavam a vender alguns brinquedos e acabámos por comprar uma meia dúzia deles por pouquíssimo dinheiro. Entre eles, duas Tartaruga Ninja, o Donatello e o Michelangelo. Não sei se foi aqui, mas por aqui consigo traçar o processo. Depois, a caminho da creche, uma loja tinha uma mochila das Tartarugas Ninja que não lhe saía dos olhos. Mais dia menos dia, veio para casa. Talvez entre uma coisa e outra, e perante muita insistência e o cansaço dessa insistência, uma procura no YouTube meteu a correr uns episódios da série de animação. Não sei como, também descobriu que havia os filmes.

Entretanto, vieram as férias em Inglaterra. Das charity shops vieram umas figuras e um livro cheio de histórias das Tartaruga Ninja. Ainda hoje é um favorito ao deitar, não propriamente para se ler as histórias, mas para os dois imitarmos as caras das tartarugas antes de adormecermos. Isto tudo e ele, naquela altura, com dois anos e meio. Talvez seja demais, talvez seja demasiado violento. Talvez. Talvez.

Lembro-me disto a propósito de “The Rehearsal”, seis episódios da melhor ficção científica que vi em anos, a cargo de Nathan Fiedler, um comediante (“Nathan For You” e também tem uma mão no “How To With John Wilson”, ambas bastante recomendáveis). A série, disponível na HBO Max, é toda ensaiada, as personagens são actores, ninguém é apanhado desprevenido. A ideia: se tivéssemos um diretor de palco para ensaiar connosco um momento que iremos viver. Esta é a premissa dada no primeiro episódio, quando Nathan ajuda um homem a descobrir o ambiente, momento e as palavras certas para contar uma verdade a uma companheira da equipa de quiz.

No segundo episódio, uma mulher quer ensaiar a maternidade através de uma solução que Fiedler arranjou: passar por diferentes períodos, até aos 18 anos de idade do suposto filho, em curtos espaços tempos, para perceber se está preparada para a experiência. Ao vê-la de fora, e incapaz de arranjar um pai adequado para desempenhar o papel, Nathan intervém para ser o pai fingido. A partir daqui “The Rehearsal” transforma-se. Desmascara-se como uma série sobre parentalidade. Por vias da ficção científica.

A descrição do modelo do ensaio, às tantas, torna-se numa premissa belíssima de um livro de ficção científica, ou de um episódio de “The Twilight Zone”: e se pudéssemos ensaiar um momento de forma a vivê-lo na perfeição, sem erros? Com o decorrer dos episódios, entra outra premissa: e regressar a um momento que vivemos, através do ensaio, para se perceber onde se falhou e onde, ou o quê, se pode alterar. Dita assim, a ideia é mais simpática do que como o autor a mostra. O que Nathan faz, ao passear pelas obsessões da sua personagem, é lembrar-nos que todos queríamos o mesmo: vivermos obsessivamente o erro até ele deixar de o ser.

Isto transposto para a parentalidade – como “The Rehearsal” o faz – torna-se perverso, porque todo o processo é um acumular de erros, mesmo que não se reconheça. Mesmo quando supostamente se acerta, há a dúvida. Há um comportamento qualquer que encaminha para o erro. Nathan Fiedler olha para esse pedaço existencial da parentalidade e corta-o em camadas muito fininhas, para o tornar ainda mais pesado, perturbador. Dito assim, parece uma série de terror. Não o é. O modo delinquente com que obriga os pais a autoavaliarem-se é primoroso.

Fica-se obcecado com a obsessão do erro: e se eu tivesse feito assim? Se o erro tivesse naquela compra de jardim, talvez tivesse evitado meses de martírio a pensar que se calhar o enfiei num consumo um pouco violento para a idade dele. E, talvez, não tivesse experienciado meses de maravilhosos saltos e cambalhotas na cama e de lutas na brincadeira entre nós. Não sei, não quero saber. No plano de “The Rehearsal” viveríamos sem saber viver, férteis com a constante dúvida da dúvida da dúvida. E infelizes por não abraçarmos o princípio da incerteza. Por isso, é grande ficção científica. E, provavelmente, a única série sobre parentalidade que vale a pena ver.

A inevitável morte de Buzz Lightyear, o brinquedo

Logo no início, há um aviso na introdução de “Buzz Lightyear”, em que menciona de relance a presença de personagem em “Toy Story” e produz a ideia de que aquilo que se irá ver é o filme que deu origem ao boneco “Buzz Lightyear” em “Toy Story”. Uma agenda metanarrativa, que mete uma história dentro da história, para criar uma história de origens. Só que, nesse processo, enterra o mais interessante em Buzz Lightyear: ele deixa de ser um brinquedo, ou um boneco, passa a ser uma pessoa, mesmo que animada.

O problema não é de agora. Mas também não foi imediato à compra da Disney, no início de 2006. Foi progressivo e com o surgimento da Disney+ começou a ser mais notável. Até aí, a Pixar mantinha a sua identidade algo intacta, agora claramente caminha numa metamorfose para entrar dentro da fábrica de emoções da Disney, onde há uma vontade, questionável, de as tornar relacionáveis, equiparáveis, terrenas, entediantes.

É fácil olhar para “Buzz Lightyear” e ver nele um bom filme de aventuras espaciais e compará-lo a outras façanhas recentes da Disney, seja no universo da Marvel ou Star Wars. Só que isso não é um elogio, é um desprestígio para a Pixar. A Pixar, vale a pena relembrar, é responsável por “Toy Story”, “À Procura de Nemo”, “Os Incríveis”, toda a saga “Carros”, toda ela uma ode a subgéneros cinematográficos em decadência, “WALL-E”, “Up – Altamente!” e, mais recentemente, “Divertida-Mente”, provavelmente o melhor filme da Pixar, se não nos deixarmos mover pela nostalgia dos primeiros. Obras que, ao longo de duas décadas e meia, ofuscaram a máquina da Disney.

WNos últimos dois anos, com “Buzz Lightyear”, já tivemos 5 filmes da Pixar. Entre 1995 e 2019 foram 21. O Disney+ foi lançado em finais de 2019. O ritmo da produção já havia avançado nos 2010s, o que era perceptível por já existirem franchises instalados e haver toda uma máquina mais oleada. O presente, contudo, parece mais focado na produção de conteúdos (é esta palavra, “conteúdos”, que começa a espetar a faca, lentamente). E isso tem tido efeitos na qualidade e, sobretudo, nas temáticas. A Pixar, de repente, deixou de ser adulta, deixou de falar de sentimentos, emoções com propriedade. Há excepções, claro, como “Soul” (2020), mas mesmo “Soul” parece uma ideia rejeitada durante a produção de “Divertida-Mente”.

E eis então “Buzz Lightyear”, a história de origens do brinquedo, no filme onde Buzz não é um boneco, mas um humano, um Ranger do Espaço. Um filme que existe para preencher todos os espaços em branco que existiam no “Toy Story” original e nas sequelas, isto é, as motivações da personagem, o seu passado, quem é Zurg – o seu inimigo -, para que servem os Rangers do Espaço e o que realmente fazem aqueles botões todas no fato de Buzz para lá da sua qualidade de boneco.

O filme é satisfatório. Apesar de ser emocionalmente infantil, usa uma série de conceitos científicos em prol do divertimento, deixando-os acessíveis à percepção de quem nunca ouviu falar daquelas coisas: mas isso não é estranho à Pixar. Mas enquanto adulto, que viu “Toy Story” na sua estreia, há algo que morre com “Buzz Lightyear”. Até agora, Buzz era um brinquedo, uma personagem que pelas suas características dava muito espaço para a imaginação.

E, enquanto brinquedo, era uma projeção no ecrã de um objecto relacionável com a nossa infância. E a sua relação inicial com Woody – e a sua evolução – é uma universal, que existiu também entre os nossos brinquedos de infância e, posteriormente, passaram para a vida. Isto não é saudosismo de uma infância eterna, ou síndroma de Peter Pan, mas há um lugar para Buzz Lightyear e esse lugar é dentro de “Toy Story”, enquanto boneco.

De repente, “Para o infinito e mais além” perde o sentido. Em “Toy Story” ele existia, era fundamentado, relacionável com a ideia do impossível-possível, que tem lugar nas mãos dos grandes que existem na nossa imaginação. Isso era tangível ao Buzz boneco, como era tangível a qualquer um dos seus amigos: eles próprios já faziam o impossível, existiam. E iam mais além para continuarem a ser possíveis. Isso era possível enquanto boneco, brinquedo.

Temos de falar sobre o Chase

O Marshall é um dálmata que exerce funções de bombeiro e de paramédico. A Skye é uma cockapoo que pilota um helicóptero, ajudando a equipa no ar. O Rocky é um rafeiro que conduz um camião do lixo que se transforma num barco rebocador; acresce – talvez o mais importante – a mensagem ecológica que carrega por via da reciclagem. O Rubble é um bulldog que conduz um bulldozer com diversas utilidades no campo da construção civil de urgência. Zuma é um labrador retriever que conduz um aerobarco, ajuda o grupo nas missões aquáticas. Chase é um pastor alemão que tem um megafone e uma rede. E ainda há Ryder, o rapaz de dez anos que tem acesso a equipamento militar. “Paw Patrol”, ou “Patrulha Pata”.

Está em todo o lado, um daqueles confrontos inevitáveis com a realidade. Fácil dizer que não se vai ceder, tarde demais quando se deu uma aberta. Há muito a dizer sobre esta série da Nickelodeon, que tem mais de 200 episódios emitidos (e a contar), está no ar desde 2013 e um espólio musical que faz um esforço tremendo para chegar a uma mão cheia de canções e com uma duração aproximada de cinco minutos. A fórmula pegou tão bem que nem precisou de dar aquele carinho extra. Até porque isso vem com o merchandise.

O título básico, elementar, cliché, deste texto é inevitável. Chase é um problema. Numa equipa onde os colegas utilizam veículos que, por associação, indicam utilidade e uma certa ideia de sujar as mãos para garantir que o trabalho se faz, Chase combina o menino disciplinado e cumpridor e uma figura de autoritarismo. Uma aberração. Reforçando: os seus instrumentos são um megafone e uma rede.

Pronto para gritar e apanhar Ryder, sir!

A coisa seria menos grave se Chase não fosse tão nuclear. Chase surge no centro das imagens, durante a acção está no meio, destacado à frente, do grupo. Por construção de imaginário, ele tornou-se na cara de “Paw Patrol”. Pode-se alegar que os miúdos preferem o Marshall, pelo atitude trapalhona que lhe dá uma certa graça e carinho pelo à-vontade com que o faz. Contudo, Marshall simboliza o menino pateta do grupo, aquele de quem toda a gente se ri. A simpatia – ou preferência – surge por fazer rir, ser o totó da turma, aquele que não se quer ser. Já Chase, experiencia-se como uma ambição. Um patético macha-alfo.

Patético e imbecil. Por hierarquia biológica, perde o papel de líder, esse cabe a Ryder, o humano de dez anos que é o pão para toda a obra para qualquer coisa que aconteça em Adventure Bay. Chase sabe disso. E quer mostrar aos outros – e a nós – que sabe mesmo disso, daí duas das suas catchphrases transparecerem aquela obediência cega, de quem quer escalar socialmente: “Ready for action Ryder, sir!” e “Chase on the Case”. Chase quer o lugar do Ryder. Não luta por ele – caramba, é um programa para miúdos – mas é o seu sonho.

Dessa obediência nasce a figura autoritária. Veste azul-polícia, de todas as fardas transforma-se naquela que causa menos empatia porque se relaciona diretamente com a autoridade. E, ao contrário dos colegas, as suas ferramentas carecem de utilidade própria. Provavelmente nenhum dos outros poderia pilotar um helicóptero como Skye, ou ter a formação de bombeiro como Marshall, operar um bulldozer como Rubble. Qualquer um sabe usar um megafone ou atirar uma rede. Estes itens definem a vulgaridade de Chase, só que o facto de ser tão central, dominante em termos de imagética, ofusca a ausência de reais virtudes. Chase é o yes man por excelência. O gajo que eventualmente será CEO por usar um megafone.

Numa equipa com qualidades tão específicas – e funcionais -, Chase existe como retrato de um passado que insiste em existir. É o douchebag por excelência, mascarado de admirável e obediente cão num universo para crianças. Sempre que ele alcança o microfone para dizer algo completamente inútil, ou atira a rede para prender alguém, perde-se alguma inocência. Está longe de ser o líder que a sua imagem pretende projectar, é um cão cujo talento se esgota na pretensão de autoridade, retrógrado num programa para os putos de hoje, com uma ambição desfasada das suas qualidades e, inevitavelmente, um tremendo imbecil. E chama-se Chase. Óbvio, pois.